Sem categoria

Silêncio na cidade não se escuta…

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado

(Francisco Buarque De Hollanda / Gilberto Passos Gil Moreira)

Acordar era difícil, mas ainda assim tinha que fazer, sentia o peso do mundo caindo sobre si, a boca seca, o mundo inteiro gritando, a vida se esvaindo, a barriga doendo, os sonhos moídos em um aparelho televisivo que narrava o caos e os desatinos daqueles que deveriam governar. 

O cheiro de sangue era seu despertador, logo o gosto de sangue se acumulava em sua boca, mesmo não querendo se sentia expulso da cama, se arrastava com a sensação de pisar em cacos, acordar era como colocar suas entranhas para fora, o corpo ardia, corria em um ritual matinal para se olhar no espelho, mas não havia nada ali, nenhuma gota fora do lugar, apesar de toda dor.  

Tudo que restava de si era um corpo vazio que agia no automático, só restou ele, um corpo vazio e desacreditado, que andava desviando dos mortos e dos vivos que habitavam as vielas do lugar onde ficava o local que chamava de abrigo. 

Não tinha mais um lar, não tinha para onde voltar nem para onde ir, tudo que restou-lhe foi um lugar vazio, um lugar que para ele era como uma prisão, um lugar que o sufocava ao acordar e o assombrava ao dormir…

“Inocentaram mais um”, ele sussurrava enquanto engolia a água que descia feito veneno, talvez devesse desistir de acordar, a esperança não existia mais, queria ter força para gritar por justiça, mas sua voz já havia se esgotado, queria ter lágrimas para chorar, mas até isso eles lhe tiraram. Caminhar era como escorregar por uma lama densa em meio a uma tempestade sem fim, era sufocante e desesperador e a cada minuto se lembrava que estava mais longe do fim. Entre acordar e dormir ele trabalhava, mergulhava em respostas automáticas e linhas de códigos perfeitas até chegar a noite e ele ter que pagar sua penitência. 

A noite ele lembrava de tudo, que não restava mais nada e que tudo que sobrou foi o silêncio que o atormentava enquanto relembrava vivamente todos os passos até o fim… 

Primeiro o flash de luz que invadiu as janelas do carro, depois o barulho, o cheiro de gasolina misturado ao sangue, o toque pegajoso escondido na penumbra, a tosse engasgada abafada em meio ao sufocamento, o grito seco em meio ao barulho incessante dos tiros cortando o metal e se alojando nas carnes quase sem vida, havia riso em meio a chuva, depois só silêncio, um silêncio sufocante e frio de quem via a morte de perto e pediu de forma insistente para ela também o levar. 

Quando o socorro apareceu acharam que ele estivesse morto e talvez realmente estivesse, não conseguia falar, nem se mexer, só havia grito, dor e medo, estava escuro demais para saber quem havia sido, mas ainda assim, em meio ao caos, imagens surgiam gravadas em câmeras, um a um seus nomes surgiam, e quanto mais apareciam, mais se afastam de uma justificativa. 

“Era uma perseguição, eles surgiram do nada”, “legítima defesa, demos ordem de parada”, “Os carros eram parecidos…”, ele lembrava de cada frase mesmo querendo as esquecer, repeti-las o fazia querer colocar para fora tudo que ainda existia dentro de si, mesmo que fosse quase nada. Ele queria esquecer quem era, esquecer todos os momentos, mesmo os felizes, se eles eram inocentes, a ele só restava ser culpado, culpado por não ter escolhido comemorar em casa, por ter cruzado um caminho sem volta, por ter ficado ao invés de partir. Ele não precisava que ninguém o culpasse, a culpa já existia dentro de si, inclusive a culpa era a única coisa que o segurava aqui, era o seu castigo permanecer, ficar, viver.

2 comentários em “Silêncio na cidade não se escuta…”

  1. minha deusa, isso foi tão diferente, mas tão sua arte e escrita kk, dentro os seus textos esse foi o mais belo pra mim, pela referência e inspiração do Francisco, e por isso e muito mais, a beleza desse conto, isso é literatura brasileira! muito obrigado por compartilhar ❤

    Curtido por 1 pessoa

Deixar mensagem para sosmartpoesy Cancelar resposta