Abuso, cartas, Minhas Crônicas, Opinião, Preconceito, Violência

Sempre…

Aos desesperados …

Desespero

  1. estado de consciência que julga uma situação sem saída; desesperança.”no d. de reconciliar-se com seu antigo amor, entregou-se à bebida”
  2. .estado de profundo desânimo de uma pessoa que se sente incapaz de qualquer ação; desalento.

O barulho das sirenes continuavam a ecoar na minha mente, eu apertava meus pulsos para amenizar o peso de tudo aquilo em mim, a choro ficava preso na garganta enquanto eu me escondia em meus passos, era como se chorar já não bastasse. Queria que me esquecessem, queria esquecer, queria que tudo aquilo parasse, mas era um querer inútil…, o barulho incessante daquele aparelho de comunicação era irritante, me senti sob constante vigilância, me sentia inútil era como se quisessem apenas me controlar e não se preocupasse comigo.

Caminhar só pelas ruas sempre foi uma tarefa difícil, mas dessa vez parecia impossível, era como tropeçar nos próprios pés enquanto fugia de todos. 

Eu era um desastre, meus joelhos sangravam, minhas mãos ardiam, eu perdi todas as palavras enquanto gritava, não consegui assimilar a dor que sentia, não conseguia entender tudo que acontecia, chorei e gritei sob os olhares de desconhecidos, era tudo tão cruel, amanheci tarde demais, tudo em mim doía apenas por existir. 

Eu senti medo, senti vergonha, quis desaparecer, engoli minhas angústias e mordi meus lábios enquanto escondia meus soluços, era desesperador sentir aquilo… Era como se o mundo não me entendesse e me detestasse apenas por existir. Era como se minha respiração estivesse sendo abafada e eu tivesse que lutar desesperadamente por migalhas de ar. A esperança de que eu sobreviveria a mais um dia era escassa.

Ouvi o barulho do relógio enquanto tomava pílulas que desciam arranhando minha garganta, tudo parecia precipitar um desarranjo em meu cérebro, é agoniante, não consigo pensar em nada além do desespero. Respirar em meio a tantos pensamentos descompassados se torna um movimento difícil e sem ritmo definido. 

O chão não se abria e não tinha como se afogar no chuveiro, mas ainda assim o meu corpo parecia não me pertencer, ali no espelho estava alguém que não conhecia, o choro vinha mais forte conforme eu percebia que não adiantava me esconder, o sabão parecia não fazer um bom trabalho,  não adiantava correr eu não tinha hora marcada com ninguém, a água parecia limpa demais mas era uma ilusão. Os soluços vieram junto com o sangue recém adquirido enquanto me punia por algo que eu não sabia como consertar. 

Viver havia se tornado mais complicado, tudo parecia mais silencioso e solitário, não há nada que coloque ritmo em minha respiração ou que faça meus pensamentos se acalmarem. É desconcertante ouvir seu próprio grito, não há como buscar ajuda porque não há esperança, não há tempo e não há certezas de que aquela dor vai passar, ninguém parece realmente disposto a ouvir, tudo que resta é a vontade de que tudo se apague e desça pelo ralo junto com aquele sangue. 

Caminhar era uma tarefa difícil, era difícil se direcionar para qualquer canto, era sufocante tentar se concentrar em uma direção quando existem tantas vozes gritando, os pensamentos vão escalonando a cada alternativa, são muitos “e se”, são muitos medos, tudo sempre parece prestes a desabar, respirar enquanto pensamos em decisões é como se sentir sufocado por uma montanha de poeira. 

Se sentir assim era desconfortante, era como ser um estranho dentro do próprio corpo, como não ter controle das próprias emoções, o dia poderia estar lindo mas nesses dias tudo parecia uma grande tempestade, ouvir outras pessoas quebrando o silêncio e atravessando os nossos pensamentos era uma gota d’água que transbordava qualquer copo, era desgastante tentar assimilar todos aqueles ruídos que invadiam minha mente de forma tão frenética.

Chorar enquanto tentava sair do seu casulo e revisitar o mundo era desesperador, todos pareciam saber tudo sobre você, ninguém te ouvia, te faziam engolir sua verdade enquanto tentava fugir daquele espaço tão assustador, eu só queria sumir, desaparecer, esquecer aquela dor. Tudo faz lembrar o que queremos esquecer, o cheiro, o toque, as palavras, tudo faz com que aquela sensação de pavor e medo surja novamente. 

Por vezes não sei o que quero, se quero a companhia daqueles que supostamente tentam quebrar todas as barreiras e me alcançar ou se quero o afastamento,  não entendo o que sinto, não consigo me expressar, tudo que consigo fazer é desesperar conforme o mundo continua a girar, ele gira sem se importar se ainda estou aqui em constante estágio de estagnação, tal qual um carro parado no meio da linha do trem, sem saber como agir, sem saber se pulo carro ou espero o trem.

É uma sensação esquisita de constante desencontro, é uma indecisão que ocupa um espaço desnecessário em meu peito. É como não se reconhecer mesmo olhando no espelho, é como sufocar com suspiros de angústia em meio a um mar de desespero. É como achar que ninguém te entende, nem no silêncio e nem na constante bagunça que é minha existência. 


Essa semana foi complicada, além de toda bagunça no meu trabalho, em São Paulo uma quadrilha homofóbica anda colocando em risco a vida de jovens, isso não foi só essa semana, mas essa semana alguém morreu. Como se não bastasse, em nosso país o congresso quer legislar a favor do estuprador. Vocês tem noção de quantas crianças são vítimas de uma violência e não reconhecem os sinais de uma gravidez…?

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Doação involuntária

No mês do orgulho, dedico esse texto para todos que se sentem presos de alguma forma.

Tem pessoas que doam dinheiro, outras doam amor, tempo, paciência e você doou tudo que podia para fazer parte de algo que não te cabia.

Você escutou durante tanto tempo que não cabia nos lugares e ainda assim queria continuar a tentar caber, seus sonhos não cabiam ali, e por isso você aos poucos foi se esquecendo deles, sorria quando riam dos seus sonhos, foi se desfazendo deles pouco a pouco até não restar mais nada. 

Eu não sei se é possível viver sem sonhos, mas para você bastava caber ali naquele espaço que tudo já era suficiente, esse era seu sonho, caber ali naquele lugar tão irregular e desproporcional, por isso tentou, por isso se despedaçou até caber naquela forma tão desconfortável. 

Quando sua forma de agir passou a também não caber, aos poucos foi se aprisionando, podando seus gestos, sua voz, sua forma de existir. Foi se moldando para ainda assim caber naquele lugar apertado, você era maior do que aquele espaço frio e repleto de solidão. 

Foi doando cada parte sua para caber em um espaço que só te fazia chorar, era como ser um passarinho dentro de uma gaiola, passou a ver o mundo pelas grades, passou a retrair suas asas e a falar só o que queriam ouvir, era domesticado e não se importava com isso, aos poucos foram arrancando suas penas, uma a uma elas iam embora enquanto suas lágrimas caiam e ninguém parecia ligar. 

Todos pareciam gostar do que estava se tornando, olhavam para dentro da gaiola e sorriam, você se sentia desnudo diante a tantos olhares, eles jogavam migalhas como recompensa, no começo achou ser suficiente, mas depois, depois elas foram se tornando tão escassas quanto a satisfação em as receber. Um enorme vazio tomava conta de você, a liberdade era convidativa, mas se aprisionou de tantas formas que o mundo do lado de fora da gaiola passou a também não te caber.

A sensação de que não cabia em nenhum lugar passou a fazer parte de quem havia se tornado, então ficava na gaiola, se sentia preso mesmo quando as portas estavam abertas, não importa o que fazia e nem por quem fazia, sempre queriam mais, queriam seus sorrisos, seu apoio, sua boa vontade em ser quem não era, não era desejado ali, mas ainda assim não iriam te expulsar porque no fundo eles precisam te usar, até não ter mais serventia, precisam te fazer útil mesmo te lembrando todos os dias da sua ineficiência em se adequar a aquele espaço.

Como todo passarinho você também sentia falta de um lugar quente, de alguém que entendesse o seu choro triste em meio às conversas, de voar para outros lugares, mas tinha medo e tudo que te restava era olhar para o chão e só ver sua finitude caindo, não tinha como esconder, todos percebiam e se você já não cabia lá antes, agora então é que tudo passou a ser um completo desencaixe. 

O choro latente que invade sua garganta fez com que te jogassem para longe daquele lugar, sua melancolia crescente era um convite a solidão, não tinha para onde ir, não tinha onde ficar, era uma peça quebrada em um brinquedo de encaixe, tentou lançar sorrisos falsos para se convencer de que tudo ficaria bem, mas nada ficaria, não se reconhecia havia se perdido de si mesmo a tanto tempo que não se entendia. 

Parecia que o choro latente que durante tanto tempo estava guardado resolvia sair em meio a tantas mágoas pelo recém abandono, a gaiola estava quebrada assim como suas asas, seu corpo doía por todas as penas arrancadas, sua voz não saia, e tudo que conseguia era desesperadamente tentar entender os motivos de terem o jogado para fora, você se esforçou tanto para caber, para se encaixar, deu tanto de si, amou mesmo os que te fizeram chorar, sorriu quando só queria se esconder, e ainda assim isso não bastou…

Depois disso, tudo que você queria era juntar seus pedaços e se recolher em um lugar onde ninguém te machucasse, foi se afastando de quem se aproximava, sua voz antes tão dócil se tornava áspera diante a qualquer ameaça de introdução no seu espaço, não queria se permitir machucar novamente, ainda doía e parecia que não iria passar tão cedo, andar por lugares desconhecidos ainda era como pisar em cacos de vidro, não sabia voar para os lugares que queria conhecer, parecia que ninguém era suficientemente treinado para te ouvir. 

Manter diálogos era torturante, não tinha ânimo para falar com pessoas que deduzia que iriam embora na primeira oportunidade, não importava se elas demonstram querer ajudar catando suas penas, era difícil acreditar, não queria ficar perto dessas pessoas, não queria acreditar que elas estavam ali por você quando nem mesmo você estava. 

Então você sentiu, sentiu um toque no canto dos seus olhos, tentou forçar sua visão para entender o que acontecia, você não conseguiu expulsar todos, um riso contido se fez presente, tentou entender o que acontecia e percebeu que o riso era seu, se sentiu culpado pela própria felicidade, mesmo que ela fosse irrisória diante a tanta dor. A culpa também passou a ser sua companheira constante, quanto mais perto as pessoas chegavam mais distante você queria ficar. 

Sentia culpa por não conseguir caber dentro daquele espaço, sentia culpa por não se reconhecer, sentia culpa por não ter um lugar para ir e nem para onde voltar, sua culpa é tão intensa que ela não te deixava sentir nada além da dor de não poder construir novas relações, se sentia tão incompleto, tão inacabado que tudo que sentia era culpa por não ser suficiente para permanecer ali com aquelas pessoas… 

Não importa o quão suficiente seja, você nunca vai caber em lugar algum, nunca vai ser o esperado ou o desejado, mas não é só você, ninguém vai ser. Se permita ter ajuda na hora de juntar seus pedaços e construir um novo espaço, onde caiba você por inteiro e não só aos pedaços, conte seus sonhos mesmo que eles pareçam bobos, ouça sua voz mesmo que digam que você fala desimportâncias. Escute o seu silêncio e cresça com ele, você não está sozinho, há sempre alguém que pode escutar seu piar de lamentação e que vai te fazer sentir em casa em meio a um abraço quente.

Abuso, Crônica, Crianças, depressão, Minhas Crônicas, Violência

Um Ponto sem Final

Alerta de Gatilho

O texto de Hoje é motivado por uma reportagem antiga da CNN, nós precisamos deixar de achar que só crianças do sexo feminino são abusadas.

“Um levantamento da pasta, feito em 2021, mostrou que dos 18.681 registros, em quase 60% dos registros, a vítima tinha entre 10 e 17 anos e cerca de 74%, a violação era contra meninas.

Os dados também apontaram que em 8.494 dos casos, a vítima e o suspeito moravam na mesma residência. Outros 3.330 casos aconteceram na casa da vítima e 3.098 na casa do suspeito.

Entre os suspeitos, em 2.617 dos casos estavam o padrasto e a madrasta, 2.443 o pai e em 2.044 denúncias, a mãe era acusada.”

(CNN – Das 4.486 denúncias de violação infantil em 2022, 18,6% estão ligadas a abuso sexual, 18/05/2022)

(Crônica ficcional) Alerta de Gatilho no texto abaixo, o texto não tem final feliz, na verdade nem final ele tem, contém momentos de sofrimento, menção a abusos e tentativa de suicídio:

Eu fui abusado.

Sim, eu fui abusado.

Quando ela o conheceu eu só tinha dez anos, ele prometeu que cuidaria de nós dois e que não deixaria nada de ruim acontecer conosco, ele cumpriu essa promessa e por um tempo eu gostei de o ter por perto, mas o tempo foi passando, o tempo que mamãe passava em casa foi ficando cada vez mais escasso em contrapartida o tempo dele em casa foi aumentando.

Logo tudo que se referia a mim, era resolvido por ele. Eu não sei se eu de fato culpo minha mãe, as vezes eu me pego pensando que ela poderia ter reduzido as horas de trabalho no hospital, que ela poderia ter esperado até o conhecer melhor, que ela poderia ter reparado que minhas mudanças de comportamento não aconteceram de forma tão repentina assim.

Eu tinha 11 anos quando reparei que os toques de carinho que ele me dava tinham mudado completamente, a primeira vez que ele abusou de mim, não foi à noite, ele não estava irritado e mamãe tinha ido passar o fim de semana com os meus avós, eu não entendia o que estava acontecendo, eu só sei que doía, doía tanto.

Não consegui contar para minha mãe, não consegui contar para nenhum dos meus professores ou amigos, eu só conseguia ficar com medo das pessoas, eu gritava e me assustava se alguém chegasse perto demais, eu perdi completamente o foco das minhas tarefas escolares, minhas notas caíram e mamãe se irritava com isso, ela não aceitava “gastar dinheiro atoa”.

Um dia mamãe teve a brilhante ideia de me levar ao médico, eu me lembro claramente que depois do clínico geral veio o psiquiatra, os remédios, eu ainda tomo os remédios, mas agora eu sou um adulto com muita coisa acumulada, naquela época eu era uma criança, uma criança que não conseguia colocar para fora tudo que sentia. Minha mãe deveria ter se recusado a me dar remédios e não ter desistido tão fácil de mim.

Não era como se eu realmente quisesse ser um aluno ruim, um péssimo filho, ou perder todos os meus amigos, eu não conseguia controlar minhas crises de ansiedade eu era só uma criança com medo de a qualquer instante alguém fazer aquilo novamente, eu chorava e gritava e as pessoas achavam que era coisa de criança, mesmo eu nem sendo tão criança assim, eu me coçava constantemente porque lembrava de cada toque daquele homem.

Eu realmente acho que ela desistiu porque quando ele sugeriu que resolveria, ela agradeceu, ela agradeceu porque não dava mais conta de mim. Eu sentia medo dele e raiva da minha mãe, quando ele começou a conversar comigo eu só conseguia concordar sem o encarar, o que era para ser uma conversa tranquila terminou com uma sessão de abusos que agora sei que não eram só físicos, mas também psicológicos.

Depois daqueles dias eu me sentia pressionado a me focar nos estudos, então eu tinha crises e mais crises enquanto tentava acompanhar as matérias, eu quase não saía do quarto, minhas notas subiram, as pessoas não entendiam aquela mudança brusca, eu ainda me assustava com certa facilidade, ainda sentia muita vontade de gritar, mas com o tempo passei a tentar me controlar mordendo os lábios, passei a me arranhar com muito mais frequência, os abusos passaram a ser frequentes e ninguém percebeu.

O tempo foi passando e junto minha angustia ia crescendo, vovó constantemente me chamava para passar os fins de semana na casa dela, eu recusava, mas conforme eu fui crescendo e aprendendo que minha casa não era um lugar seguro eu passei a aceitar, e não, não significa que aquele homem deixou de tocar o meu corpo, pelo contrário, ele passou a ameaçar não só a mim como minha mãe e avó, eu não conseguia reagir.

Eu sabia o nome do que ele fazia comigo, é claro que eu sabia, eu tinha 12 anos quando a professora de ciências falou sobre o corpo, desejos e abusos, eu senti vontade de falar alguma coisa, mas na aula toda a ênfase era para abusos sofridos por meninas, o efeito daquela aula em mim, foi pela primeira vez eu trocar minhas unhas pela ponta do lápis, aquilo que ele fazia comigo ganhou um nome e tudo que eu sentia era nojo de mim por não conseguir pedir ajuda.

Eu fui crescendo retraído e angustiado, não conseguia estabelecer vínculos de amizades com ninguém, quando eu passei aos 16 anos a controlar meus próprios remédios eu passei a os usar de forma pouco ortodoxa, eu tomava mais de um na hora de dormir e assim eu passei a não ver o que ele fazia com meu corpo.

Minha mãe foi ficando cada vez mais sem paciência comigo, ela não entendia minha falta de apatia, minha falta de vontade em estabelecer diálogos grandes com eles, minhas explosões repentinas de humor, ela não entendia e as vezes eu acho que ela não queria tentar me entender.

Tudo passou a piorar quando ele me obrigou a parar de tomar os remédios na hora de dormir, se eu achava que era ruim tomar os remédios eu percebi naquele instante que era muito pior ficar sem eles, ele passou a me chantagear, a trocar os favores pelos remédios, eu não tinha escolha a não ser fazer o que ele queria, eu comecei a ficar paranoico, a ter crises de ansiedade e de pânico, eu mal conseguia formular frases inteiras.

Quando minha vó faleceu meu mundo desabou, mesmo que eu já tivesse 17 anos, eu ainda me sentia uma criança sozinha, eu não tinha mais ninguém para me dar amor, para me proteger, eu não tinha para onde fugir, então eu fiz a única coisa que eu poderia fazer, eu tentei me matar, eu tomei todos os comprimidos que eu consegui juntar, eu premeditei, quando meu corpo ficou mole e minha mente foi ficando em neblina eu achei que tudo finalmente tinha acabado, eu não consigo me lembrar de nada além de gritos.

Eu acordei dois ou três dias depois com minha mãe sentada na cadeira ao lado da minha cama e meu padrasto trazendo café para ela. Minha mãe é médica pediatra, eu estava no hospital em que ela trabalhava e ela parecia não dormir a muitos dias, eu não consegui a encarar, eu senti um misto de vergonha e raiva.

Eu virei meu rosto de lado para evitar o olhar recriminatório dela, eu tentei tapar meus ouvidos para não ouvir o que ela falava, mas eu não consegui. Eu ainda lembro de cada palavra e da forma como foram pronunciadas.

_Você tem ideia do que eu estou sentindo? – eu não tinha ideia do que ela sentia, mas eu também não entendia o que eu sentia, eu não respondi e ela continuou a falar:

_Você não sabe como eu me senti quando te vi jogado naquele corredor, você não tem ideia do medo que eu senti quando eu achei que fosse te perder. – ela gritava, gritava cada vez mais perto de mim, até que me segurou os ombros me obrigando à encara-la.

Eu também estava com raiva, não era como se ela fosse realmente uma boa mãe e ela podia ver isso nos meus olhos.

_Você não tem ideia das noites que eu não dormi para poder te sustentar, eu te dei tudo que era o melhor, tudo, e você me retribuí assim, tentando se matar? – ela secou as lágrimas sem tirar seu olhar acusatório de mim, eu não sabia o que responder, eu já disse eu sentia muita raiva dela então eu apenas forcei meu corpo para que ela me soltasse e virei de lado.

_Tá todo mundo comentando que você tentou se matar, todos agora sabem dos seus cortes, das marcas em seu corpo, todos agora sabem que meu filho é um suicida. – ela gritava e aquela frase me fez a encarar, minha fúria se esvaiu e eu só conseguia sentir vontade de chorar, ela não se preocupou comigo.

_Você tem marcas de abuso por todo o seu corpo. Eu não sabia que você era gay e muito menos que estava envolvido com alguém, me diz o que aconteceu…, me diz quem te machucou, você precisa dizer alguma coisa!!! – Ela parecia tentar se acalmar, mas eu ainda conseguia sentir o barulho da respiração dela, estava eufórica, raivosa, seus rosnados se misturavam ao barulho dos aparelhos médicos ligados ao meu corpo.

_Você precisa me contar o que aconteceu…, eu preciso saber… – ela sentenciava a última frase tão baixo que se eu não estivesse perto não ouviria, parecia querer dizer que necessitava saber se era culpa dela ou não.

_Eu não…não… – eu não conseguia saber o que responder, aquele homem ainda estava no quarto encostado no batente da porta, eu desviei meu olhar do dele e comecei a entrar em crise, minha mãe se sentou na cama e me abraçou, mesmo que eu lutasse para que ela se afastasse, eu não queria aquele abraço, eu não queria aquele toque, eu queria poder falar.

_Filho…

Enquanto eu estava naquele quarto de hospital eu perdi a noção de tempo, quando eu voltei para casa parecia que finalmente eu teria um pouco de paz, era meu último ano no ensino médio e eu sabia que minha chance de sair de casa seria fazendo um curso superior, eu não sabia o que eu queria fazer, mas tinha que fazer algo que me permitisse sair daquele lugar.

Eu estudei, estudei mais do que o necessário, não só para me livrar do colégio mas para passar na faculdade, minha mãe me ajudou, depois de tudo que havia acontecido, ela de certa forma tentou ficar ao meu lado, eu ainda estava um tanto quanto reticente, mas não tive muita escolha, ela se sentava ao meu lado e me fazia mil perguntas para as quais eu não tinha respostas.


Canais de denuncia:

Disque 100 – O Disque Direitos Humanos (Disque 100) é um serviço que funciona 24 horas e ajuda na disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos.

Delegacia – Unidade policial fixa para atendimento ao público. Algumas regiões possuem delegacias especializadas como a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), ou apenas ligue 190

Conselho Tutelar – O Conselho Tutelar (CT) é um órgão administrativo municipal, autônomo, responsável pelo atendimento de crianças ameaçadas ou violadas em seus direitos.

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Mentiras sobre “nós”

173/366 - Abseits / Offside
Disponível em pxhere

 

Atenção: esse texto contém menção a depressão, abuso e suicídio. Se achar que isso pode ser um gatilho, por favor não continue essa leitura.

Nó: Enlaçamento de fios, de linhas, de cordas, de cordões, fazendo com que suas extremidades passem uma pela outra, amarrando-as. [Figurado] Vínculo; ligação estreita entre pessoas por afeição ou parentesco. [plural] nós.

Nós:Pessoa que fala e mais uma ou várias;

Dicionário: dicio

Quando a criança falou, eles não ouviram;

Quando tropeçou enquanto tentava fugir, ninguém estava na sua frente para frear seus passos;

Quando disse “não”, ninguém desconfiou que era medo.

Quando disse “sim”, ninguém percebeu que ele gritava por dentro dizendo não.

Fugiu, ninguém percebeu;

Gritou, falaram que era birra, “coisa de criança”;

Seu corpo não parava quieto, mas “era o efeito da hiperatividade”;

Roeu as unhas, puxou os cabelos, mordeu os lábios, “era de ansiedade”;

Cresceu, e quanto mais crescia mais remédios de nomes complicados conhecia;

Não gostava de chorar, de falar, de respirar, “o nomearam como depressivo”;

Não queria engolir a comida, já engolia muitas palavras enquanto diziam ser só mais “alguns de seus delírios”.

Se retraía, tentou se esconder, encolheu seu corpo e tremeu, “não suportou tudo que teve que segurar”. Não estava frio, mas tremeu.

Chorou como chorava quando era criança, não adiantou, ninguém veio em seu socorro, tudo continuava no mesmo lugar, a cama, o chão, as paredes, e os gritos que com o tempo aprendeu a conter.

No fim de tudo, nada restou, as lágrimas caiam, e a dor que o dilacerava era mais cortante que o objeto que ele usou para dar fim a tudo.

Não se despediu, não disse “eu te amo”, não mandou sinais de aviso. Ele apenas foi, foi ser livre enquanto deixava suas verdades finalmente saírem e como se não se importasse se iriam ou não acreditar nelas depois de tanto tempo. Ele apenas foi, sem se importar com tudo que podiam dizer.

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Diáspora

Diáspora.png

Diáspora : dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.

Se perderam…

Não era silencioso, havia correria, era turbulento…,

se perderam mesmo de mãos dadas.

Eram rostos tão diferentes, vozes diferentes, ninguém se entendia, ninguém se conhecia e os que se conheciam se perdiam, ou haviam perdido.

perdido, perdido tudo, desde abraços, afagos até lembranças.

Não existiam mais as paredes que guardavam segredos, ou a escadas responsável por tantos tombos, não tinham como voltar para os braços que recebiam sempre abertos.

Tudo se perdeu não só para si como para todos.

Eram desconhecidos que reconheciam suas dores, as mãos que consolavam eram igualmente consoladas.

O peito subia, o peito descia, as pernas tremiam, a voz falhava, não se reconhecia, procurava por quem lhe pertencia.

Seu pedaço da história havia se perdido de si, o vento era quente e sufocante, lhe roubava todo o ar, era como se sua cabeça não conseguisse se concentrar, pesava.

Tudo pesava, pesava mais do que quando o carregou no ventre, pesava mais do que quando o carregou pela primeira vez nos braços.

Não entendia o que acontecia, uma hora o tinha tão perto de seus braços e no outro o perdia.

Não havia vento, e ainda assim sentia como se seus passos fossem a cada instante apagados.

Não havia como olhar para trás, não tinha como voltar.

Nada mais existia, nada além do desespero de não se ter para onde ir e pra quem voltar.

Transforam as lembranças em poeira, tiraram seu futuro das suas mãos.

Sentiu a dor dos que perderam seus amores, sentiu sua própria dor enquanto gritava em desespero.

Doeu, se dilacerou por dentro.

Fechou os olhos e viu a massa cinzenta, o fogo, e o vermelho carmim que manchava tudo inclusive sua roupa.

Se perdeu,

aos poucos se perdeu dentro de si.

A escuridão foi aos poucos enevoando tudo…

Quando mais se apertavam para caber naquele espaço tão pequeno, mais sua cabeça recordava os gritos.

A dor aumentou, não existia luz.

A angustia entalou na garganta, não tinha o que mais por pra fora além de seus gritos.

Atravessamos o mar Egeu
O barco cheio de fariseus
Como os cubanos, sírios, ciganos
Como romanos sem Coliseu
Atravessamos pro outro lado
No Rio Vermelho do mar sagrado
Os Center shoppings superlotados
De retirantes refugiados

(Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte)

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Carolina Maria de Jesus – Diário de uma Favelada

200px-Carolina_Maria_de_Jesus_assinando_seu_livro_Quarto_de_Despejo_em_1960

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), foi mais uma das escritoras que conheci durante minha graduação, especificamente durante uma disciplina que estudava a relação de identidade e diários. É estranho tentar entender como uma das escritoras mais importantes de nossa história, reconhecida mundialmente, só me foi apresentada na graduação, no auge dos meus vinte e poucos anos.

Quarto de despejo se tornou o livro que a fez ser conhecida, as palavras que juntas compõe esse livro, se tornam importantes para podermos entender a sociedade da década de 50, pela perspectiva de Carolina, uma catadora de lixo, mulher negra, periférica e mãe solteira, que dia a dia matava seus leões dentro e fora das vielas paulistana.

Sofreu violência de gênero, social e racial, suas linhas não nos fazem sorrir, não nos iludem, são duras, é a realidade e não a fantasia, não teve bolo de aniversário na festa de sua filha, porque não se tinha dinheiro nem para o pão.

Carolina retratou em seu diário muito mais do que ela imaginou, escreveu como quem conta um segredo a um amigo, confessou suas angustias diante a fome de seus filhos e os julgamentos de seus vizinhos, ela questionou, não se calou e gritou para que a ouvissem.

Não queria se submeter a homem algum, era mãe solteira, foi mãe de filhos que nem eram seus para os proteger dos julgamentos que ela tão bem conhecia, se preocupou quando eles demoravam a voltar, abraçou apertado, tão apertado que quase se tornou possível deslumbrar do momento enquanto se lia.

Quarto de despejo foge dos padrões da nossa literatura, ou melhor foge dos padrões da nossa norma culta da linguagem, sua protagonista é negra, pobre e desbocada, trabalhava de sol a sol e lutava para que sua vida não se resumisse a sua casa de madeira, Carolina não era só escritora também era uma leitora que também lia o mundo.

Literatura Marginal, é assim que se chama essa escrita, livre das tradicionais amarras que costumamos ser apresentados na escola, a forma como falamos e escrevemos também é motivo de exclusão, a normatização da linguagem é um instrumento de dominação, onde só se valida o que uma pessoa fala se “sua fala” condizer com as regras de linguagem. Normatizar a linguagem, é excluir outras formas de expressão, outras culturas.

Estudei em escola pública durante minha vida inteira, salvo na educação infantil, eu sei a importância que a literatura de Carolina tem para alunos periféricos assim como tem para mim. Carolina escrevia sobre a sua vida, seus dilemas, sobre mais de cinquenta décadas atrás, quando o Brasil começa a se desenvolver economicamente, e ainda assim nós encontramos tantas semelhanças.

Carolina não se resumiu a quarto de despejo, que era bem mais do que sua casa de madeira, quarto de despejo era a cidade de São Paulo, a sociedade que a excluía de todas as formas possíveis, como se gritasse a todo instante que o lugar dela e de seus filhos não fosse no asfalto.

Quarto de despejo não foi seu único livro, na verdade foi seu diário, antes dele ela havia tentado publicar crônicas e poemas, mas só com seu diário, que ela passou a ser notada e justamente pelo motivo que era excluída. Apesar do livro de rendido bem, Carolina viu pouco desse dinheiro, na verdade ela viu o suficiente para que saísse da favela e fosse morar em um pequeno sítio na periferia de São Paulo.

Outros Livros:

Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963). O volume Diário de Bitita (1982) (Publicação Póstuma).

Links Literalmente Legais (L³):

Documentário

Conversa com Bial

Literafro

QUARTO DE DESPEJO – MANIFESTAÇÃO DO DISCURSO FEMININO NA
LITERATURA BRASILEIRA

Recomendação de Leitura: Preconceito Linguístico de Marcos Bagno

 

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Procursu

fuga

Correu,

Caiu,

Desesperou-se,

Não olhou para trás enquanto fugia,

Correu mais um pouco, não se importou se o joelho estava ralado, se estava descalça, se tudo em si doía.

Atravessou a cidade aos gritos e mesmo assim ninguém a ouvia.

Seus gritos se tornaram silenciosos, suas dores passaram a não importar, era mais uma entre tantas e tantas na rua.

Correu, quando sentia que não valia mais apena correr,

Caiu e mesmo sem ter a onde se apoiar, insistiu em levantar.

Desesperou-se porque se viu sozinha no meio de uma rua desconhecida.

Esbarrou, empurrou, ninguém se importou,

Não houveram perguntas quanto ao seu desespero,

Não houveram respostas aos seus suplícios,

Não,

Não,

Não, era uma sequencias de negações que começavam nela e terminavam do outro lado de todas as ruas pelas quais passou.

Sorriu,

Sorriu entre as lágrimas que insistiam em cair,

Riu de si mesma por ter acreditado,

Se achou culpada por tudo que aconteceu,

Mentiu, mentiu para si mesma dizendo q estava tudo bem, “não estava”.

 

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Dor

passarinho

Passarinho vivia preso, não sabia voar;

Suas asas se embolavam nas entrelinhas dos seus livros preferidos;

Passarinho fazia ninho com aquilo que não queria ler;

Passarinho se perdia naquilo que não conseguia entender;

Passarinho se perdia entre os versos que ele cantava e ninguém entendia;

Passarinho queria voar, mas não podia.

Escrito para á pessoa que tropeçou com os seus sentimentos em mim….

Dor,

sentiu dor, mas não havia nada físico que lhe causasse aquilo que sentia.

Seu peito subia e descia, tudo doía, era angustiante, amedrontador.

É sentiu medo, o medo que ele sempre sentia mas ninguém sabia;

Tentou se distrair, mas miseravelmente falhou, se perdeu com facilidade em sua próprias palavras, não as entendia e já nem sabia porque antes ria;

Não se lembrava, não respirava, não enxergava;

Ele ouvia, ouvia tudo que não queria ouvir, queria que parassem, mas não paravam, isso o assustava.

Tentou dar um passo caiu;

Tentou escapar se descobriu preso;

Todas as portas estavam fechadas, trancadas, ele estava trancado, seus suspiros estavam trancados, suas dores estavam trancadas o rasgando por dentro.

Tudo cheirava a sangue, inclusive o tempo que não passava.

Sangue, ele sangrava.

Ele sangrava sem derramar uma gota de sangue, uma hora ou outra todo aquele sangue inundaria aquele lugar.

Doía e ninguém ligava, ninguém perguntava, ninguém se importava;

Doía tanto que ele tentou parar a dor e não conseguiu, aceitou que era castigo pelos pecados que ele nem sabia haver cometido;

Tentou achar o ar e não o sentiu, doeu, acelerou, ele não estava correndo, mas acelerou;

Seu coração acelerou, sentiu ainda mais medo;

Doeu,

Doeu,

Doeu;

O ar não saía, a dor não passava, ele tropeçava.

Chorou, se afogou nas próprias lágrimas, quis gritar, mas estava perdendo o ar;

As palavras não saíam, os versos não mais floresciam, tudo era momento e ele só queria que aquele momento acabasse;

Queria que parassem de gritar, que o ouvissem e o retirassem daquele lugar;

Que parassem os medos, que tudo parasse, que o tempo parasse, que o barulho parasse, que ele parasse.

Amor, Crônica, Crianças, escolhas, Homofobia, Minhas Crônicas, Opinião, Padrão, Poliamor, Preconceito, Sem categoria, Violência

Pena & Tinta : Tão opostos e tão iguais.

passaros
imagem retirada do Pinterest, não consegui achar autor. ;(

Cartas de amor devem ter saído de moda, mas eu não fui comunicada formalmente a respeito disso, me apaixonei, mais vezes tentando te odiar, do que eu poderia imaginar, na verdade eu me assusto quando escrevo isso, e leio em voz alta.

Te conheci enquanto amarrava meu tênis e me preparava para cobrar uma falta, na aula de educação física, ainda não acredito que os meninos iriam realmente te chamar para entrar no meu lugar, ok, eu já superei isso, (mentira, não superei! Machistas) mas você não aceitou, preferiu continuar lendo aquele seu livro de histórias fantásticas, affs, te achei um tanto quanto “metido”.

Pensando bem você realmente era metido, exibido e estranho, aquele cabelo arrumadinho, aquele tênis completamente branco, aquela calça jeans limpa… Que tipo de adolescente era você? Com toda certeza alguém bem estranho, estranho o suficiente para no primeiro trabalho em grupo a turma inteira te odiar. “Eu não vou fazer com ninguém professora, vou fazer sozinho, eu sou capaz”. É…, naquele dia você conseguiu a antipatia de bastante gente.

Não preciso te lembrar que no final do dia, você precisou correr bastante antes de levar o primeiro soco, e cair de cara na lama. Demorei muito para ir te ajudar, fiquei meio estática quando percebi que os meninos estavam gritando palavras ofensivas na sua direção, o professor de Educação Física foi bem mais rápido do que eu, e te tirou do meio daquilo tudo, enquanto anotava o nome de cada um dos agressores.

Na última semana antes de fecharmos o bimestre você simplesmente sumiu, achamos que você tinha finalmente desistido, mas que tipo de adolescente desiste de algo e os pais não ligam? Essa hipótese foi quebrada quando a coordenadora recebeu uma ligação do seu pai, avisando que você estava doente. Duas semanas depois você apareceu com o braço quebrado.

No dia que você esqueceu seu caderno, e saiu sem nem olhar para trás, eu te segui, e para minha total surpresa, você não percebeu, lá estava você desajeitadamente entrando naquela academia de dança. Balé, quem diria o “senhor arrogante” fazia balé, não preciso dizer a quantidade de pensamentos que surgiam na minha mente né?

Fui homofóbica e o fato de ser adolescente não era desculpa para isso, muito menos para tirar a foto que eu tirei de você, enquanto fazia algo complexo na ponta dos pés, acho que nunca poderei falar o nome daqueles passos. Também acho que nunca serei capaz de realiza-los, lembro que tentei te imitar enquanto te observava.

No fim daquele dia não enviei a foto, não criei perfil falso, não fiz nada a não ser te olhar e imaginar como alguém tão idiota conseguia fazer algo tão lindo, é eu achava, eu ainda acho balé algo intenso e lindo, naquele instante eu só pensei que talvez fosse bom tentar te entender um pouco.

Te devolvi o caderno, e você não me agradeceu, sugeri fazermos o trabalho junto e você simplesmente continuou andando, quando já estava quase perdendo a paciência nossa professora de história resolveu que todos deveríamos fazer os trabalhos em grupo, ninguém queria fazer com você, e você não queria tirar zero.

Fazer um trabalho de ensino médio nunca tinha sido tão difícil, livros, livros, livros?????? Com tanta coisa na internet, como aquela professora pode nos mandar pesquisar na biblioteca da escola, você não falava muito, você não falava nada, apenas copiamos algumas coisas, tiramos algumas xerox e só.

No fim daquela semana já tínhamos feito tudo, era sexta, não nos despedimos, mas você foi embora, chutou as pedras pelo meio do caminho e se perdeu entre as ruas. Eu sabia para onde você ia.

Durante todo aquele ano eu fui a sua única parceira de grupo, o que me causou sérios problemas, era representante de turma e tecnicamente eu havia abandonado meu grupo de trabalho para te ajudar, e não estava recebendo nem bom dia, adolescentes são vingativos, um dia resolvi que não queria mas tentar te ajudar, não queria mais ser do seu “grupo”. Foi a pior coisa que eu fiz admito.

Lá estava você quietinho demais, disperso, fingindo ler aquele livro, aquele maldito casaco escondia quase toda a sua mão, eu não deveria me preocupar, mas estava calor demais e você parecia não ligar para as “zoações” que ocorriam no seu entorno, aquelas brincadeirinhas nada inocentes já estavam cansando, eu não via mais graça. Eu te segui naquele dia, fiquei preocupada, você estava estranho, tinha sobrado nos grupos e eu me senti culpada.

Você havia entrado em uma lanchonete, limpou os olhos e eu estranhei, você estava chorando, hoje eu me pergunto qual o problema? Homens choram… Uma moça bagunçou os seus cabelos enquanto dava um leve beijinho em seu rosto secando suas lágrimas, algo aqui dentro do meu coração ficou bem espremido, sabe o que eu pensei naquele momento? “Ele curte meninas????” Como eu era idiota, me desculpe, deveria ter me perguntado o motivo das suas lágrimas.

Um dia eu apareci naquela lanchonete, você me encarou surpreso, mas não falou comigo, eu também não falei com você. Dias se passaram até você finalmente se sentar ao meu lado e perdurar o silêncio por minutos que mais pareciam horas, enquanto eu bebia o suco de laranja.

“Você pode fazer o trabalho de matemática comigo?”, te encarei durante muitos instantes, sem nenhum por favor, “claro que não”, você se levantou e foi se embora. Eu deveria ter perguntado o motivo de você ter quebrado aquele seu orgulho idiota, mas não fiz, outro maldito erro. Você ficou de recuperação em matemática, você não tinha problemas com números quando eu te conheci, eu não conseguia entender como aquilo era possível.

As férias de dezembro logo chegaram, soube que você tinha passado de ano com média cinco, passou, viajei e só voltei em janeiro, quando fui naquela lanchonete você não trabalhava mais lá, não frequentava as aulas de balé e eu não entendi como você tinha evaporado dessa forma, talvez tivesse viajado, eu desejei que só fosse uma viajem.

A primeira semana finalmente aconteceu, mas você só apareceu duas semanas depois, estava com o braço enfaixado, com olheiras, e andava devagar, jogou suas coisas na cadeira do fundo, aquela que ficava perto da parede, tombou sua cabeça ali, a professora suspirou quando você não respondeu, alguns deram leves risinhos, outros cochicharam, mas estávamos no terceiro ano e bem…, no terceiro já somos meio-adultos, alguns não acharam graça e se preocuparam com você, eu me preocupei.

Você era uma figura estranha, nunca pensei ver você perdendo a cabeça e socando alguém, também nunca pensei te ver fumando, mas lá estava você fazendo tudo aquilo que esperavam que você fizesse…

Quando suas notas baixas no primeiro bimestre surgiram e você passou a não responder os professores, comecei a perceber que eu deveria ter feito aquele trabalho de matemática com você. Pela terceira vez te segui, você não foi para lugar algum especificamente, só sentou no chão de uma rua qualquer, enquanto a chuva caia e se misturava com suas lágrimas, é meninos choram, eu já tinha aprendido isso. Me sentei ao seu lado e você me ignorou, não percebi quando comecei a soluçar, mas que droga eu tinha me apaixonado por você!

“QUAL A PORRA DO SEU PROBLEMA” – Foi essa a primeira frase que eu troquei com você em meses, você me ignorou e eu te bati, foi um soco forte que fez você fechar os olhos.

“O MEU PROBLEMA SÃO OS SERES HUMANOS” – Como assim seres humanos? Fiquei parada tentando entender aquilo, mas você não continuou, se levantou e eu te segui, você me deixou te seguir enquanto fumava mais um dos seus cigarros, entrou naquela casa e bateu a porta na minha cara. No dia seguinte você não foi, nem no outro dia, no terceiro dia eu bati na sua porta, seu pai falou que você estava doente.

Quando finalmente apareceu eu me sentei ao seu lado, estava decidida a não me livrar de você. Mas que DROGA, você nem falava nada, mas por algum motivo você tinha voltado a fazer os trabalhos.

“Eu te vi no dia que tirou aquela foto na academia”, eu te encarei surpresa, você não me olhava estava observando alguma coisa mais interessante em algum outro canto, “minha mãe fazia balé, eu me sinto perto dela quando danço”. Eu não entendi, ainda não entendo, os motivos de você finalmente ter começado a falar…

Quando eu conheci seu pai achei que ele era quem te deixava daquele jeito, machucado. Não, não era seu pai, e eu descobri isso quando você surtou enquanto fazíamos um trabalho de geografia, lembra? Você se cortou na minha frente, eu me desesperei, eu gritei com você, segurei seus braços e te beijei, você desmaiou, eu entendi o motivo das camisas grandes, eu não duvidava que tivessem mais daqueles cortes espalhados. Você não me encarou por dias, eu também não tinha te encarado. Droga eu realmente gostava de você, mas não da forma como você gostava de mim.

Apaguei aquela foto do meu celular quase que ao mesmo tempo que seu pai me ligou pedindo para conversarmos, seu pai sim era um cara engraçado, ele nem sabia como começar aquela maldita conversa, sua mãe tinha morrido, você se mudado para morar com ele, trocou de escola, teve que abandonar o namorado, finalmente eu tinha descoberto que você era gay, finalmente eu tinha descoberto sua história, sua depressão e sua tendência autodestrutiva.

Eu também era meio autodestrutiva naquela época, engoli minhas lágrimas enquanto te encarava brincando com uma caixa de música na cama, eu estava decidida a não te deixar sofrer, me sentei ao seu lado, respirei fundo enquanto vi você se sentar e abaixar os olhos me perguntando se eu sabia, o silêncio era tão ensurdecedor que eu quase me perdi enquanto meu corpo me empurrava na sua direção, te abracei e foi nosso primeiro abraço debulhado em lágrimas. Droga eu te amava, e isso estava me destruindo.

Nos tornamos amigos finalmente, era final de ano, vestibular, provas finais, decidir o que fazer durante boa parte da vida era algo tão complexo que tudo que eu pensei foi “não quero fazer nada, quero fazer de tudo”, minha primeira opção foi uma universidade longe de casa, liberdade finalmente, trote, professores malucos, solidão. Passamos pelas mesmas coisas em locais diferentes, não estudávamos mais juntos, mas você parecia melhor, eu não me preocupei, seu pai também não, mas estávamos errados, nenhum de nós notou suas olheiras voltando a surgir, ou suas palavras sumindo em meio as frases. Droga eu era sua amiga, eu te amava, como deixei isso acontecer.

Naquele dia você simplesmente não ligou avisando que chegaria mais tarde, tinha sumido, comunicamos a polícia, dias depois você apareceu, estava um caco, não queria falar, tivemos que te dopar para que cuidassem de você. Você só ficava dopado, mas um dia, um determinado dia você simplesmente se cansou.

Eu realmente deveria não ter te amado, talvez se eu tivesse te amado menos eu tivesse percebido toda aquela dor disfarçada de sorrisos pequenos, eu ainda penso em você toda vez que abro aquela caixa de música, ainda penso em você enquanto ouço alguma música clássica e ainda penso em você quando percebo que eu poderia ter amenizado a sua dor.

Brincadeiras machucam, arrancam sangue, cansam… Eu entendo o motivo de naquele dia você me dizer que o seu problema eram os “seres humanos”, acho que no fundo esse é um problema de todos. DROGA eu ainda te amo…

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Esse texto faz parte do Pena & Tinta, um projeto de escrita criativa que tem como objetivo a criação de textos (crônicas, contos, poesias, relatos pessoais etc) em cima de temas predeterminados mensalmente. Um dos temas de novembro é OPOSTOS.

 Tem um blog e quer participar das próximas edições do Pena & Tinta? A gente está te esperando AQUI.

Capitalismo, Crônica, Minhas Crônicas, Opinião, Preconceito, Proletariado, Racismo, Sem categoria, Violência

“As vezes eu falo com a vida”

Poder da Imagem.JPG
Foto de Tércio Teixeira, Morro da Mangueira, RIO, durante a cerimônia de abertura das Olimpíadas

Me abrace e me dê um beijo
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo (domingo!)

O Rappa

A forma como o olhavam dizia muito mais do que qualquer palavra pronunciada, era como um mar de história, história escrita a muitas décadas. Era uma epidemia que se espalhava como a agonia que subia em sua garganta, ele queria gritar, mas não podia.

Revirou os olhos, ignorou “os canas” do outro lado da rua, apertou o passo, endireitou a mochila, mas antes mesmo de atravessar a segunda esquina ele ouviu o primeiro aviso, o som dos tiros ecoaram, as crianças se abrigaram nos braços da mãe, baixaram as portas do comércio, ele apenas olhou para o relógio enquanto fazia mais uma vez o sinal da “cruz”, que “ele o protegesse”.

Entre o silêncio gritante que se instaurou naquelas ruas sem asfalto, ele tropeçou nas pedras, enquanto via as portas sendo arrombadas, sentiu novamente os olhares, baixou a cabeça ao passar bem perto de uma das crianças que praticamente viu crescer, o tiro tinha sido para ele, jogado ao chão, como tantas outras, podia ouvir o grito silencioso daquela mãe.

“Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!”

_Tá olhando o quê? – Perguntavam, ignorou. Apertou o passo, cravou os olhos ignorando as lágrimas, “podia ter sido eu!”, ele sempre pensava.

Enquanto se perdia nos seus pensamentos, ouviu mais tiros, viu os carros pretos, os homens armados, estavam invadindo novamente, adentrando as vielas onde a “Segurança” nunca entrou.

“Qual a paz que eu não quero conservar
Pra tentar ser feliz?”

Se abrigou no bar de esquina. O tal português não gostava muito de si, torceu o nariz antes dele entrar e pedir uma garrafa d’água, viu a mulher correndo, ofereceu-lhe água e ela negou. Se sentou no chão mesmo, ouviu a gritaria, o choro, podia imaginar o sangue, todos ali eram seus conhecidos, a dor era algo eminente.

_Já acabou? – Nem percebeu quando o dono do bar o olhou de cima para baixo, o medindo, olhou suas roupas, sua mochila e finalmente seus olhos. Se negou a responder, ele não podia o expulsar e tão pouco ele poderia sair dali, limpou os olhos e continuou a ouvir todas aquelas vozes que vinham de tão longe e ainda assim tão perto.

Pegou os cadernos na mochila, e resolveu se perder por ali, era assim que sua mãe tinha o ensinado. Sempre se acalmava e se lembrava dela enquanto pegava os cadernos no meio de todo aquele barulho. Ainda podia a escutar brigando consigo, tentando o distrair, o mandando estudar, dizendo que “aquele lugar” não era para si. Nunca entendeu aquela frase, aquela era sua casa, ela deveria ser segura.

“Eu não quero ficar
esperando
o tempo passar, passar”

Não percebeu quando suas lágrimas voltaram a cair e muito menos quando suas mãos automaticamente passavam as folhas, o dono do bar mais uma vez o encarava, um olhar descrente em negação, um suspiro e mais uma pergunta.

_Difícil né? – não era difícil, talvez até fosse, mas não aquilo, se limitou a responder um “unhum” e voltou sua atenção para o livro, o fechou finalmente, haviam cessado a guerra, se levantou calmamente, arrumou novamente a mochila e esperou o homem finalmente abrir a porta do bar, saiu, estava chovendo, apressou o passo até finalmente chegar no ponto de ônibus, suspirou apertado, quando viu as crianças saindo da escola, corriam desesperadas pela rua, as imaginou encontrando tudo aquilo do qual estava fugindo.

O ônibus finalmente apareceu, não parou, o motorista tinha sido alertado a não parar ali, caminhou até mais a frente, andou por toda aquela avenida a pé, olhou os carros apressados, ouviu as buzinas, observou o rio começando a encher, sabia que quando chegasse teria que escoar a água, ficou frustrado pensando se havia lembrando de retirar tudo do chão.

“Não dava tempo de voltar”, o relógio mais uma vez o dizia que estava atrasado, apressou o passo, mas o manteve cauteloso, não podia e nem queria ser “confundido” novamente, “atividade suspeita”, ele era uma “atividade suspeita” desde que nascerá.

“Oh! Meu Deus
Se eu não rezei direito
A culpa é do sujeito
Desse pobre que nem sabe fazer a oração”

Ignorou os pensamentos, e enxergou o ponto de ônibus, correu um pouco a fim de chegar mais rápido, viu que recuaram a sua presença, se arrumou um pouco, limpou um pouco a roupa e evitou mexer nos bolsos e na mochila, tudo que ele menos queria era parecer uma atividade suspeita estando atrasado.

Embarcou no ônibus lotado, colocou a mochila pra frente, e fechou os olhos, teria que encarar mais alguns bons minutos em pé se nada estivesse alagado, ignorou toda a confusão dos bancos preferenciais, enquanto voltava sua concentração para se lembrar dos artigos, falou em silêncio, e percebeu que arrancou a curiosidade de um menino sentado no colo da mãe, mexeu um pouco o cabelo enquanto observava que ela brigava com ele por algum motivo, não entendeu muito bem, mas viu o menino rindo e resolveu acompanhar aquele riso sapeca destinado a si.

Observou quando a moça entrou, ela também estava molhada e apresada, chegou a trocar olhares com ela, principalmente quando ela esbarrou em si propositalmente, ela o conhecia, já o tinha visto outras vezes ali, naquele mesmo ônibus, trocaram algumas poucas palavras e logo depois cada um voltou a se enterrar em seu próprio mundo.

Ela era linda, mas não tinha nome”.

Apertou o ferro de apoio do ônibus quando o motorista freou, alguém tinha acabado de ser atropelado, o trânsito tinha parado de vez. Ficaram bons minutos esperando tudo se resolver, viu o homem levantar apressadamente, pegar suas coisas do chão, falar que “estava tudo bem” e adentrar a condução apressadamente, tempo era dinheiro…

O ônibus voltou a andar, acelerou, ouviu alguns xingamentos do motorista enquanto ele cortava alguns outros carros na avenida, era sempre assim, deixou alguns no ponto, outros fora até finalmente chegar aquele que todos já conheciam, “Olha a bala, a paçoca, o amendoim, tudo baratinho só na mão do amigo, lá fora é mais caro”, ele já havia decorado o discurso, os rostos eram diferentes, mas a oratória era a mesma.

_Ajuda o parceiro aqui, irmão. – sentiu o toque nos braços, mostrou os bolsos vazios e o sorriso de canto, o homem entendeu, sempre entendiam, no fundo rolava sempre aquela identificação, viu o homem caminhando dentro do coletivo e por fim jogando um pacote de amendoim para o motorista, desceu e agradeceu.

A viagem seguiu tranquila até o seu destino, desceu naquele bairro diferente, prédios altos, poucas pichações, o olhavam de cima sempre, abaixou o olhar enquanto apertou o passo, evitou encarar, atravessou a rua olhando apenas para os lados, desviou das pessoas e antes que o parassem por algum motivo ele descruzava os caminhos, o céu ali estava limpo.

“As grades do condomínio
São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão”

Encarou os morros que cercavam aquele local, ainda estava chovendo daquele lado, mas ali não, o comercio estava aberto, as crianças andavam tranquilamente, caminhou pela calçada, admirou o asfalto liso e não encarou aquelas pessoas, viu de relance um carro passando, os homens armados passando por ele, deu uma breve olhada para dentro do “camburão”, o suficiente para reconhecer um rosto, a mão caída para o lado de fora, o corpo jogado, com toda certeza ainda chovia no morro.

Atravessou a última rua até finalmente entrar naquele lugar, ainda tinha prova, estava atrasado e tinha certeza que havia perdido todo o primeiro tempo, correu apresado, não esperou o elevador, correu desesperadamente no único lugar em que se sentia à-vontade para correr, escorregou um pouco, admirou a vista enquanto tinha pressa, olhou o entorno e observou tamanha contradição, prédios, casas, medo, lágrimas, morro, asfalto.

Estacionou seus passos, colocou a mão na porta, observou o olhar repreensivo do professor enquanto ele desviava pelo canto dos olhos ele caminhar até seu lugar, permaneceu calado, fez algumas anotações e trocou alguns olhares com os colegas enquanto ouvia as indiretas a respeito dos atrasos.

Recebeu a prova, secou as mãos, bateu na testa ao perceber que havia esquecido o estojo, pegou emprestado o material, refletiu, leu, respondeu, demorou mais do que deveria, fez a prova, saiu correndo voltaria mais tarde, estava atrasado para o trabalho, olhou o relógio, andou até o trabalho, vestiu o uniforme, atendeu, atendeu, atendeu, foi ignorado quando falou que algo estava errado, “ele estava errado”, esqueceu do almoço, correu para a próxima aula, bateu a cabeça de cansaço, se forçou a ouvir o que tanto falavam naquela aula, olhou pela janela, para o relógio, bateu os dedos na mesa.

_Está com pressa? – Era claro que estava, estava chovendo, ele podia ouvir bem longinquamente que estava se tendo um tiroteio por algum lugar, mas mesmo assim respondeu que não, encarou os malditos três tempos finais de uma quarta feira como se fossem os últimos, faltavam só mais alguns meses para tudo terminar, só mais alguns meses.

“Sou pescador de ilusões
Sou pescador de ilusões”

10 horas, correu até o ponto, algumas luzes piscavam, estava deserto o suficiente para ele pensar em pegar dois ônibus ao invés de um, mas percebeu que se fizesse isso possivelmente ficaria sem dinheiro no final da semana, apressou os passos, limpou os olhos pelo sono e por sorte o ônibus já estava lá quanto chegou, o motorista o conhecia, o esperou.

Finalmente estava sentado, encarava a noite chuvosa que pincelava aquele lugar tão contraditório, fechou os olhos inalando a fina brisa, podia ter certeza que ficaria doente, tentou evitar esses pensamentos e voltou a pensar em coisas banais, desejou que a tal moça de todas as manhãs entrasse no ônibus, ele não sabia quem ela era, nem para onde ia, mas gostava de imaginar coisas sobre ela, mesmo que no fundo ele soubesse serem impossíveis de acontecer.

Não deu sinal, estava cansado demais para se lembrar do ponto, mas por muita sorte o motorista o conhecia bem o suficiente para saber que ele havia esquecido, deu um grande sorriso enquanto descia as escadas e desejava “boa noite” e agradecia, correu para casa, lembrou-se da chuva pela manhã, olhou o rio e como de esperado ele havia subido, podia ver a marca d’agua na parede assim como as ondas de terra no chão.

As ruas estavam silenciosas, vazias, algumas fracas luzes iluminavam seu caminho, podia ver alguns homens fardados o seguindo com os olhares, entrou em casa, pegou o rodo escoou a água, se jogou no chão, cansado, se arrastou até o banheiro, ligou a água fria, ainda não podia dormir, se sentou no corredor, onde não haviam janelas, ascendeu a fraca luz, e voltou a sua leitura…

Mal percebeu quando seus olhos finalmente fecharam…

A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego!
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!(Medo!)
As vezes eu falo com a vida
As vezes é ela quem diz
Qual a paz que eu não quero conservar
Pra tentar ser feliz?
– O Rappa-

Músicas Utilizadas:

Minha Alma,

Pescador de Ilusões,

Súplicas  cearenses,

Lei da sobrevivência,

Rodo cotidiano.