Abuso, cartas, Minhas Crônicas, Opinião, Preconceito, Violência

Sempre…

Aos desesperados …

Desespero

  1. estado de consciência que julga uma situação sem saída; desesperança.”no d. de reconciliar-se com seu antigo amor, entregou-se à bebida”
  2. .estado de profundo desânimo de uma pessoa que se sente incapaz de qualquer ação; desalento.

O barulho das sirenes continuavam a ecoar na minha mente, eu apertava meus pulsos para amenizar o peso de tudo aquilo em mim, a choro ficava preso na garganta enquanto eu me escondia em meus passos, era como se chorar já não bastasse. Queria que me esquecessem, queria esquecer, queria que tudo aquilo parasse, mas era um querer inútil…, o barulho incessante daquele aparelho de comunicação era irritante, me senti sob constante vigilância, me sentia inútil era como se quisessem apenas me controlar e não se preocupasse comigo.

Caminhar só pelas ruas sempre foi uma tarefa difícil, mas dessa vez parecia impossível, era como tropeçar nos próprios pés enquanto fugia de todos. 

Eu era um desastre, meus joelhos sangravam, minhas mãos ardiam, eu perdi todas as palavras enquanto gritava, não consegui assimilar a dor que sentia, não conseguia entender tudo que acontecia, chorei e gritei sob os olhares de desconhecidos, era tudo tão cruel, amanheci tarde demais, tudo em mim doía apenas por existir. 

Eu senti medo, senti vergonha, quis desaparecer, engoli minhas angústias e mordi meus lábios enquanto escondia meus soluços, era desesperador sentir aquilo… Era como se o mundo não me entendesse e me detestasse apenas por existir. Era como se minha respiração estivesse sendo abafada e eu tivesse que lutar desesperadamente por migalhas de ar. A esperança de que eu sobreviveria a mais um dia era escassa.

Ouvi o barulho do relógio enquanto tomava pílulas que desciam arranhando minha garganta, tudo parecia precipitar um desarranjo em meu cérebro, é agoniante, não consigo pensar em nada além do desespero. Respirar em meio a tantos pensamentos descompassados se torna um movimento difícil e sem ritmo definido. 

O chão não se abria e não tinha como se afogar no chuveiro, mas ainda assim o meu corpo parecia não me pertencer, ali no espelho estava alguém que não conhecia, o choro vinha mais forte conforme eu percebia que não adiantava me esconder, o sabão parecia não fazer um bom trabalho,  não adiantava correr eu não tinha hora marcada com ninguém, a água parecia limpa demais mas era uma ilusão. Os soluços vieram junto com o sangue recém adquirido enquanto me punia por algo que eu não sabia como consertar. 

Viver havia se tornado mais complicado, tudo parecia mais silencioso e solitário, não há nada que coloque ritmo em minha respiração ou que faça meus pensamentos se acalmarem. É desconcertante ouvir seu próprio grito, não há como buscar ajuda porque não há esperança, não há tempo e não há certezas de que aquela dor vai passar, ninguém parece realmente disposto a ouvir, tudo que resta é a vontade de que tudo se apague e desça pelo ralo junto com aquele sangue. 

Caminhar era uma tarefa difícil, era difícil se direcionar para qualquer canto, era sufocante tentar se concentrar em uma direção quando existem tantas vozes gritando, os pensamentos vão escalonando a cada alternativa, são muitos “e se”, são muitos medos, tudo sempre parece prestes a desabar, respirar enquanto pensamos em decisões é como se sentir sufocado por uma montanha de poeira. 

Se sentir assim era desconfortante, era como ser um estranho dentro do próprio corpo, como não ter controle das próprias emoções, o dia poderia estar lindo mas nesses dias tudo parecia uma grande tempestade, ouvir outras pessoas quebrando o silêncio e atravessando os nossos pensamentos era uma gota d’água que transbordava qualquer copo, era desgastante tentar assimilar todos aqueles ruídos que invadiam minha mente de forma tão frenética.

Chorar enquanto tentava sair do seu casulo e revisitar o mundo era desesperador, todos pareciam saber tudo sobre você, ninguém te ouvia, te faziam engolir sua verdade enquanto tentava fugir daquele espaço tão assustador, eu só queria sumir, desaparecer, esquecer aquela dor. Tudo faz lembrar o que queremos esquecer, o cheiro, o toque, as palavras, tudo faz com que aquela sensação de pavor e medo surja novamente. 

Por vezes não sei o que quero, se quero a companhia daqueles que supostamente tentam quebrar todas as barreiras e me alcançar ou se quero o afastamento,  não entendo o que sinto, não consigo me expressar, tudo que consigo fazer é desesperar conforme o mundo continua a girar, ele gira sem se importar se ainda estou aqui em constante estágio de estagnação, tal qual um carro parado no meio da linha do trem, sem saber como agir, sem saber se pulo carro ou espero o trem.

É uma sensação esquisita de constante desencontro, é uma indecisão que ocupa um espaço desnecessário em meu peito. É como não se reconhecer mesmo olhando no espelho, é como sufocar com suspiros de angústia em meio a um mar de desespero. É como achar que ninguém te entende, nem no silêncio e nem na constante bagunça que é minha existência. 


Essa semana foi complicada, além de toda bagunça no meu trabalho, em São Paulo uma quadrilha homofóbica anda colocando em risco a vida de jovens, isso não foi só essa semana, mas essa semana alguém morreu. Como se não bastasse, em nosso país o congresso quer legislar a favor do estuprador. Vocês tem noção de quantas crianças são vítimas de uma violência e não reconhecem os sinais de uma gravidez…?

Amor, Ansiedade, cartas, Crônica, depressão, escolhas, Minhas Crônicas, Opinião, Preconceito, silêncio, Violência

Doação involuntária

No mês do orgulho, dedico esse texto para todos que se sentem presos de alguma forma.

Tem pessoas que doam dinheiro, outras doam amor, tempo, paciência e você doou tudo que podia para fazer parte de algo que não te cabia.

Você escutou durante tanto tempo que não cabia nos lugares e ainda assim queria continuar a tentar caber, seus sonhos não cabiam ali, e por isso você aos poucos foi se esquecendo deles, sorria quando riam dos seus sonhos, foi se desfazendo deles pouco a pouco até não restar mais nada. 

Eu não sei se é possível viver sem sonhos, mas para você bastava caber ali naquele espaço que tudo já era suficiente, esse era seu sonho, caber ali naquele lugar tão irregular e desproporcional, por isso tentou, por isso se despedaçou até caber naquela forma tão desconfortável. 

Quando sua forma de agir passou a também não caber, aos poucos foi se aprisionando, podando seus gestos, sua voz, sua forma de existir. Foi se moldando para ainda assim caber naquele lugar apertado, você era maior do que aquele espaço frio e repleto de solidão. 

Foi doando cada parte sua para caber em um espaço que só te fazia chorar, era como ser um passarinho dentro de uma gaiola, passou a ver o mundo pelas grades, passou a retrair suas asas e a falar só o que queriam ouvir, era domesticado e não se importava com isso, aos poucos foram arrancando suas penas, uma a uma elas iam embora enquanto suas lágrimas caiam e ninguém parecia ligar. 

Todos pareciam gostar do que estava se tornando, olhavam para dentro da gaiola e sorriam, você se sentia desnudo diante a tantos olhares, eles jogavam migalhas como recompensa, no começo achou ser suficiente, mas depois, depois elas foram se tornando tão escassas quanto a satisfação em as receber. Um enorme vazio tomava conta de você, a liberdade era convidativa, mas se aprisionou de tantas formas que o mundo do lado de fora da gaiola passou a também não te caber.

A sensação de que não cabia em nenhum lugar passou a fazer parte de quem havia se tornado, então ficava na gaiola, se sentia preso mesmo quando as portas estavam abertas, não importa o que fazia e nem por quem fazia, sempre queriam mais, queriam seus sorrisos, seu apoio, sua boa vontade em ser quem não era, não era desejado ali, mas ainda assim não iriam te expulsar porque no fundo eles precisam te usar, até não ter mais serventia, precisam te fazer útil mesmo te lembrando todos os dias da sua ineficiência em se adequar a aquele espaço.

Como todo passarinho você também sentia falta de um lugar quente, de alguém que entendesse o seu choro triste em meio às conversas, de voar para outros lugares, mas tinha medo e tudo que te restava era olhar para o chão e só ver sua finitude caindo, não tinha como esconder, todos percebiam e se você já não cabia lá antes, agora então é que tudo passou a ser um completo desencaixe. 

O choro latente que invade sua garganta fez com que te jogassem para longe daquele lugar, sua melancolia crescente era um convite a solidão, não tinha para onde ir, não tinha onde ficar, era uma peça quebrada em um brinquedo de encaixe, tentou lançar sorrisos falsos para se convencer de que tudo ficaria bem, mas nada ficaria, não se reconhecia havia se perdido de si mesmo a tanto tempo que não se entendia. 

Parecia que o choro latente que durante tanto tempo estava guardado resolvia sair em meio a tantas mágoas pelo recém abandono, a gaiola estava quebrada assim como suas asas, seu corpo doía por todas as penas arrancadas, sua voz não saia, e tudo que conseguia era desesperadamente tentar entender os motivos de terem o jogado para fora, você se esforçou tanto para caber, para se encaixar, deu tanto de si, amou mesmo os que te fizeram chorar, sorriu quando só queria se esconder, e ainda assim isso não bastou…

Depois disso, tudo que você queria era juntar seus pedaços e se recolher em um lugar onde ninguém te machucasse, foi se afastando de quem se aproximava, sua voz antes tão dócil se tornava áspera diante a qualquer ameaça de introdução no seu espaço, não queria se permitir machucar novamente, ainda doía e parecia que não iria passar tão cedo, andar por lugares desconhecidos ainda era como pisar em cacos de vidro, não sabia voar para os lugares que queria conhecer, parecia que ninguém era suficientemente treinado para te ouvir. 

Manter diálogos era torturante, não tinha ânimo para falar com pessoas que deduzia que iriam embora na primeira oportunidade, não importava se elas demonstram querer ajudar catando suas penas, era difícil acreditar, não queria ficar perto dessas pessoas, não queria acreditar que elas estavam ali por você quando nem mesmo você estava. 

Então você sentiu, sentiu um toque no canto dos seus olhos, tentou forçar sua visão para entender o que acontecia, você não conseguiu expulsar todos, um riso contido se fez presente, tentou entender o que acontecia e percebeu que o riso era seu, se sentiu culpado pela própria felicidade, mesmo que ela fosse irrisória diante a tanta dor. A culpa também passou a ser sua companheira constante, quanto mais perto as pessoas chegavam mais distante você queria ficar. 

Sentia culpa por não conseguir caber dentro daquele espaço, sentia culpa por não se reconhecer, sentia culpa por não ter um lugar para ir e nem para onde voltar, sua culpa é tão intensa que ela não te deixava sentir nada além da dor de não poder construir novas relações, se sentia tão incompleto, tão inacabado que tudo que sentia era culpa por não ser suficiente para permanecer ali com aquelas pessoas… 

Não importa o quão suficiente seja, você nunca vai caber em lugar algum, nunca vai ser o esperado ou o desejado, mas não é só você, ninguém vai ser. Se permita ter ajuda na hora de juntar seus pedaços e construir um novo espaço, onde caiba você por inteiro e não só aos pedaços, conte seus sonhos mesmo que eles pareçam bobos, ouça sua voz mesmo que digam que você fala desimportâncias. Escute o seu silêncio e cresça com ele, você não está sozinho, há sempre alguém que pode escutar seu piar de lamentação e que vai te fazer sentir em casa em meio a um abraço quente.

Abuso, Crônica, Crianças, depressão, Minhas Crônicas, Violência

Um Ponto sem Final

Alerta de Gatilho

O texto de Hoje é motivado por uma reportagem antiga da CNN, nós precisamos deixar de achar que só crianças do sexo feminino são abusadas.

“Um levantamento da pasta, feito em 2021, mostrou que dos 18.681 registros, em quase 60% dos registros, a vítima tinha entre 10 e 17 anos e cerca de 74%, a violação era contra meninas.

Os dados também apontaram que em 8.494 dos casos, a vítima e o suspeito moravam na mesma residência. Outros 3.330 casos aconteceram na casa da vítima e 3.098 na casa do suspeito.

Entre os suspeitos, em 2.617 dos casos estavam o padrasto e a madrasta, 2.443 o pai e em 2.044 denúncias, a mãe era acusada.”

(CNN – Das 4.486 denúncias de violação infantil em 2022, 18,6% estão ligadas a abuso sexual, 18/05/2022)

(Crônica ficcional) Alerta de Gatilho no texto abaixo, o texto não tem final feliz, na verdade nem final ele tem, contém momentos de sofrimento, menção a abusos e tentativa de suicídio:

Eu fui abusado.

Sim, eu fui abusado.

Quando ela o conheceu eu só tinha dez anos, ele prometeu que cuidaria de nós dois e que não deixaria nada de ruim acontecer conosco, ele cumpriu essa promessa e por um tempo eu gostei de o ter por perto, mas o tempo foi passando, o tempo que mamãe passava em casa foi ficando cada vez mais escasso em contrapartida o tempo dele em casa foi aumentando.

Logo tudo que se referia a mim, era resolvido por ele. Eu não sei se eu de fato culpo minha mãe, as vezes eu me pego pensando que ela poderia ter reduzido as horas de trabalho no hospital, que ela poderia ter esperado até o conhecer melhor, que ela poderia ter reparado que minhas mudanças de comportamento não aconteceram de forma tão repentina assim.

Eu tinha 11 anos quando reparei que os toques de carinho que ele me dava tinham mudado completamente, a primeira vez que ele abusou de mim, não foi à noite, ele não estava irritado e mamãe tinha ido passar o fim de semana com os meus avós, eu não entendia o que estava acontecendo, eu só sei que doía, doía tanto.

Não consegui contar para minha mãe, não consegui contar para nenhum dos meus professores ou amigos, eu só conseguia ficar com medo das pessoas, eu gritava e me assustava se alguém chegasse perto demais, eu perdi completamente o foco das minhas tarefas escolares, minhas notas caíram e mamãe se irritava com isso, ela não aceitava “gastar dinheiro atoa”.

Um dia mamãe teve a brilhante ideia de me levar ao médico, eu me lembro claramente que depois do clínico geral veio o psiquiatra, os remédios, eu ainda tomo os remédios, mas agora eu sou um adulto com muita coisa acumulada, naquela época eu era uma criança, uma criança que não conseguia colocar para fora tudo que sentia. Minha mãe deveria ter se recusado a me dar remédios e não ter desistido tão fácil de mim.

Não era como se eu realmente quisesse ser um aluno ruim, um péssimo filho, ou perder todos os meus amigos, eu não conseguia controlar minhas crises de ansiedade eu era só uma criança com medo de a qualquer instante alguém fazer aquilo novamente, eu chorava e gritava e as pessoas achavam que era coisa de criança, mesmo eu nem sendo tão criança assim, eu me coçava constantemente porque lembrava de cada toque daquele homem.

Eu realmente acho que ela desistiu porque quando ele sugeriu que resolveria, ela agradeceu, ela agradeceu porque não dava mais conta de mim. Eu sentia medo dele e raiva da minha mãe, quando ele começou a conversar comigo eu só conseguia concordar sem o encarar, o que era para ser uma conversa tranquila terminou com uma sessão de abusos que agora sei que não eram só físicos, mas também psicológicos.

Depois daqueles dias eu me sentia pressionado a me focar nos estudos, então eu tinha crises e mais crises enquanto tentava acompanhar as matérias, eu quase não saía do quarto, minhas notas subiram, as pessoas não entendiam aquela mudança brusca, eu ainda me assustava com certa facilidade, ainda sentia muita vontade de gritar, mas com o tempo passei a tentar me controlar mordendo os lábios, passei a me arranhar com muito mais frequência, os abusos passaram a ser frequentes e ninguém percebeu.

O tempo foi passando e junto minha angustia ia crescendo, vovó constantemente me chamava para passar os fins de semana na casa dela, eu recusava, mas conforme eu fui crescendo e aprendendo que minha casa não era um lugar seguro eu passei a aceitar, e não, não significa que aquele homem deixou de tocar o meu corpo, pelo contrário, ele passou a ameaçar não só a mim como minha mãe e avó, eu não conseguia reagir.

Eu sabia o nome do que ele fazia comigo, é claro que eu sabia, eu tinha 12 anos quando a professora de ciências falou sobre o corpo, desejos e abusos, eu senti vontade de falar alguma coisa, mas na aula toda a ênfase era para abusos sofridos por meninas, o efeito daquela aula em mim, foi pela primeira vez eu trocar minhas unhas pela ponta do lápis, aquilo que ele fazia comigo ganhou um nome e tudo que eu sentia era nojo de mim por não conseguir pedir ajuda.

Eu fui crescendo retraído e angustiado, não conseguia estabelecer vínculos de amizades com ninguém, quando eu passei aos 16 anos a controlar meus próprios remédios eu passei a os usar de forma pouco ortodoxa, eu tomava mais de um na hora de dormir e assim eu passei a não ver o que ele fazia com meu corpo.

Minha mãe foi ficando cada vez mais sem paciência comigo, ela não entendia minha falta de apatia, minha falta de vontade em estabelecer diálogos grandes com eles, minhas explosões repentinas de humor, ela não entendia e as vezes eu acho que ela não queria tentar me entender.

Tudo passou a piorar quando ele me obrigou a parar de tomar os remédios na hora de dormir, se eu achava que era ruim tomar os remédios eu percebi naquele instante que era muito pior ficar sem eles, ele passou a me chantagear, a trocar os favores pelos remédios, eu não tinha escolha a não ser fazer o que ele queria, eu comecei a ficar paranoico, a ter crises de ansiedade e de pânico, eu mal conseguia formular frases inteiras.

Quando minha vó faleceu meu mundo desabou, mesmo que eu já tivesse 17 anos, eu ainda me sentia uma criança sozinha, eu não tinha mais ninguém para me dar amor, para me proteger, eu não tinha para onde fugir, então eu fiz a única coisa que eu poderia fazer, eu tentei me matar, eu tomei todos os comprimidos que eu consegui juntar, eu premeditei, quando meu corpo ficou mole e minha mente foi ficando em neblina eu achei que tudo finalmente tinha acabado, eu não consigo me lembrar de nada além de gritos.

Eu acordei dois ou três dias depois com minha mãe sentada na cadeira ao lado da minha cama e meu padrasto trazendo café para ela. Minha mãe é médica pediatra, eu estava no hospital em que ela trabalhava e ela parecia não dormir a muitos dias, eu não consegui a encarar, eu senti um misto de vergonha e raiva.

Eu virei meu rosto de lado para evitar o olhar recriminatório dela, eu tentei tapar meus ouvidos para não ouvir o que ela falava, mas eu não consegui. Eu ainda lembro de cada palavra e da forma como foram pronunciadas.

_Você tem ideia do que eu estou sentindo? – eu não tinha ideia do que ela sentia, mas eu também não entendia o que eu sentia, eu não respondi e ela continuou a falar:

_Você não sabe como eu me senti quando te vi jogado naquele corredor, você não tem ideia do medo que eu senti quando eu achei que fosse te perder. – ela gritava, gritava cada vez mais perto de mim, até que me segurou os ombros me obrigando à encara-la.

Eu também estava com raiva, não era como se ela fosse realmente uma boa mãe e ela podia ver isso nos meus olhos.

_Você não tem ideia das noites que eu não dormi para poder te sustentar, eu te dei tudo que era o melhor, tudo, e você me retribuí assim, tentando se matar? – ela secou as lágrimas sem tirar seu olhar acusatório de mim, eu não sabia o que responder, eu já disse eu sentia muita raiva dela então eu apenas forcei meu corpo para que ela me soltasse e virei de lado.

_Tá todo mundo comentando que você tentou se matar, todos agora sabem dos seus cortes, das marcas em seu corpo, todos agora sabem que meu filho é um suicida. – ela gritava e aquela frase me fez a encarar, minha fúria se esvaiu e eu só conseguia sentir vontade de chorar, ela não se preocupou comigo.

_Você tem marcas de abuso por todo o seu corpo. Eu não sabia que você era gay e muito menos que estava envolvido com alguém, me diz o que aconteceu…, me diz quem te machucou, você precisa dizer alguma coisa!!! – Ela parecia tentar se acalmar, mas eu ainda conseguia sentir o barulho da respiração dela, estava eufórica, raivosa, seus rosnados se misturavam ao barulho dos aparelhos médicos ligados ao meu corpo.

_Você precisa me contar o que aconteceu…, eu preciso saber… – ela sentenciava a última frase tão baixo que se eu não estivesse perto não ouviria, parecia querer dizer que necessitava saber se era culpa dela ou não.

_Eu não…não… – eu não conseguia saber o que responder, aquele homem ainda estava no quarto encostado no batente da porta, eu desviei meu olhar do dele e comecei a entrar em crise, minha mãe se sentou na cama e me abraçou, mesmo que eu lutasse para que ela se afastasse, eu não queria aquele abraço, eu não queria aquele toque, eu queria poder falar.

_Filho…

Enquanto eu estava naquele quarto de hospital eu perdi a noção de tempo, quando eu voltei para casa parecia que finalmente eu teria um pouco de paz, era meu último ano no ensino médio e eu sabia que minha chance de sair de casa seria fazendo um curso superior, eu não sabia o que eu queria fazer, mas tinha que fazer algo que me permitisse sair daquele lugar.

Eu estudei, estudei mais do que o necessário, não só para me livrar do colégio mas para passar na faculdade, minha mãe me ajudou, depois de tudo que havia acontecido, ela de certa forma tentou ficar ao meu lado, eu ainda estava um tanto quanto reticente, mas não tive muita escolha, ela se sentava ao meu lado e me fazia mil perguntas para as quais eu não tinha respostas.


Canais de denuncia:

Disque 100 – O Disque Direitos Humanos (Disque 100) é um serviço que funciona 24 horas e ajuda na disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos.

Delegacia – Unidade policial fixa para atendimento ao público. Algumas regiões possuem delegacias especializadas como a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), ou apenas ligue 190

Conselho Tutelar – O Conselho Tutelar (CT) é um órgão administrativo municipal, autônomo, responsável pelo atendimento de crianças ameaçadas ou violadas em seus direitos.

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Mentiras sobre “nós”

173/366 - Abseits / Offside
Disponível em pxhere

 

Atenção: esse texto contém menção a depressão, abuso e suicídio. Se achar que isso pode ser um gatilho, por favor não continue essa leitura.

Nó: Enlaçamento de fios, de linhas, de cordas, de cordões, fazendo com que suas extremidades passem uma pela outra, amarrando-as. [Figurado] Vínculo; ligação estreita entre pessoas por afeição ou parentesco. [plural] nós.

Nós:Pessoa que fala e mais uma ou várias;

Dicionário: dicio

Quando a criança falou, eles não ouviram;

Quando tropeçou enquanto tentava fugir, ninguém estava na sua frente para frear seus passos;

Quando disse “não”, ninguém desconfiou que era medo.

Quando disse “sim”, ninguém percebeu que ele gritava por dentro dizendo não.

Fugiu, ninguém percebeu;

Gritou, falaram que era birra, “coisa de criança”;

Seu corpo não parava quieto, mas “era o efeito da hiperatividade”;

Roeu as unhas, puxou os cabelos, mordeu os lábios, “era de ansiedade”;

Cresceu, e quanto mais crescia mais remédios de nomes complicados conhecia;

Não gostava de chorar, de falar, de respirar, “o nomearam como depressivo”;

Não queria engolir a comida, já engolia muitas palavras enquanto diziam ser só mais “alguns de seus delírios”.

Se retraía, tentou se esconder, encolheu seu corpo e tremeu, “não suportou tudo que teve que segurar”. Não estava frio, mas tremeu.

Chorou como chorava quando era criança, não adiantou, ninguém veio em seu socorro, tudo continuava no mesmo lugar, a cama, o chão, as paredes, e os gritos que com o tempo aprendeu a conter.

No fim de tudo, nada restou, as lágrimas caiam, e a dor que o dilacerava era mais cortante que o objeto que ele usou para dar fim a tudo.

Não se despediu, não disse “eu te amo”, não mandou sinais de aviso. Ele apenas foi, foi ser livre enquanto deixava suas verdades finalmente saírem e como se não se importasse se iriam ou não acreditar nelas depois de tanto tempo. Ele apenas foi, sem se importar com tudo que podiam dizer.

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Diáspora

Diáspora.png

Diáspora : dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.

Se perderam…

Não era silencioso, havia correria, era turbulento…,

se perderam mesmo de mãos dadas.

Eram rostos tão diferentes, vozes diferentes, ninguém se entendia, ninguém se conhecia e os que se conheciam se perdiam, ou haviam perdido.

perdido, perdido tudo, desde abraços, afagos até lembranças.

Não existiam mais as paredes que guardavam segredos, ou a escadas responsável por tantos tombos, não tinham como voltar para os braços que recebiam sempre abertos.

Tudo se perdeu não só para si como para todos.

Eram desconhecidos que reconheciam suas dores, as mãos que consolavam eram igualmente consoladas.

O peito subia, o peito descia, as pernas tremiam, a voz falhava, não se reconhecia, procurava por quem lhe pertencia.

Seu pedaço da história havia se perdido de si, o vento era quente e sufocante, lhe roubava todo o ar, era como se sua cabeça não conseguisse se concentrar, pesava.

Tudo pesava, pesava mais do que quando o carregou no ventre, pesava mais do que quando o carregou pela primeira vez nos braços.

Não entendia o que acontecia, uma hora o tinha tão perto de seus braços e no outro o perdia.

Não havia vento, e ainda assim sentia como se seus passos fossem a cada instante apagados.

Não havia como olhar para trás, não tinha como voltar.

Nada mais existia, nada além do desespero de não se ter para onde ir e pra quem voltar.

Transforam as lembranças em poeira, tiraram seu futuro das suas mãos.

Sentiu a dor dos que perderam seus amores, sentiu sua própria dor enquanto gritava em desespero.

Doeu, se dilacerou por dentro.

Fechou os olhos e viu a massa cinzenta, o fogo, e o vermelho carmim que manchava tudo inclusive sua roupa.

Se perdeu,

aos poucos se perdeu dentro de si.

A escuridão foi aos poucos enevoando tudo…

Quando mais se apertavam para caber naquele espaço tão pequeno, mais sua cabeça recordava os gritos.

A dor aumentou, não existia luz.

A angustia entalou na garganta, não tinha o que mais por pra fora além de seus gritos.

Atravessamos o mar Egeu
O barco cheio de fariseus
Como os cubanos, sírios, ciganos
Como romanos sem Coliseu
Atravessamos pro outro lado
No Rio Vermelho do mar sagrado
Os Center shoppings superlotados
De retirantes refugiados

(Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte)

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Carolina Maria de Jesus – Diário de uma Favelada

200px-Carolina_Maria_de_Jesus_assinando_seu_livro_Quarto_de_Despejo_em_1960

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), foi mais uma das escritoras que conheci durante minha graduação, especificamente durante uma disciplina que estudava a relação de identidade e diários. É estranho tentar entender como uma das escritoras mais importantes de nossa história, reconhecida mundialmente, só me foi apresentada na graduação, no auge dos meus vinte e poucos anos.

Quarto de despejo se tornou o livro que a fez ser conhecida, as palavras que juntas compõe esse livro, se tornam importantes para podermos entender a sociedade da década de 50, pela perspectiva de Carolina, uma catadora de lixo, mulher negra, periférica e mãe solteira, que dia a dia matava seus leões dentro e fora das vielas paulistana.

Sofreu violência de gênero, social e racial, suas linhas não nos fazem sorrir, não nos iludem, são duras, é a realidade e não a fantasia, não teve bolo de aniversário na festa de sua filha, porque não se tinha dinheiro nem para o pão.

Carolina retratou em seu diário muito mais do que ela imaginou, escreveu como quem conta um segredo a um amigo, confessou suas angustias diante a fome de seus filhos e os julgamentos de seus vizinhos, ela questionou, não se calou e gritou para que a ouvissem.

Não queria se submeter a homem algum, era mãe solteira, foi mãe de filhos que nem eram seus para os proteger dos julgamentos que ela tão bem conhecia, se preocupou quando eles demoravam a voltar, abraçou apertado, tão apertado que quase se tornou possível deslumbrar do momento enquanto se lia.

Quarto de despejo foge dos padrões da nossa literatura, ou melhor foge dos padrões da nossa norma culta da linguagem, sua protagonista é negra, pobre e desbocada, trabalhava de sol a sol e lutava para que sua vida não se resumisse a sua casa de madeira, Carolina não era só escritora também era uma leitora que também lia o mundo.

Literatura Marginal, é assim que se chama essa escrita, livre das tradicionais amarras que costumamos ser apresentados na escola, a forma como falamos e escrevemos também é motivo de exclusão, a normatização da linguagem é um instrumento de dominação, onde só se valida o que uma pessoa fala se “sua fala” condizer com as regras de linguagem. Normatizar a linguagem, é excluir outras formas de expressão, outras culturas.

Estudei em escola pública durante minha vida inteira, salvo na educação infantil, eu sei a importância que a literatura de Carolina tem para alunos periféricos assim como tem para mim. Carolina escrevia sobre a sua vida, seus dilemas, sobre mais de cinquenta décadas atrás, quando o Brasil começa a se desenvolver economicamente, e ainda assim nós encontramos tantas semelhanças.

Carolina não se resumiu a quarto de despejo, que era bem mais do que sua casa de madeira, quarto de despejo era a cidade de São Paulo, a sociedade que a excluía de todas as formas possíveis, como se gritasse a todo instante que o lugar dela e de seus filhos não fosse no asfalto.

Quarto de despejo não foi seu único livro, na verdade foi seu diário, antes dele ela havia tentado publicar crônicas e poemas, mas só com seu diário, que ela passou a ser notada e justamente pelo motivo que era excluída. Apesar do livro de rendido bem, Carolina viu pouco desse dinheiro, na verdade ela viu o suficiente para que saísse da favela e fosse morar em um pequeno sítio na periferia de São Paulo.

Outros Livros:

Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963). O volume Diário de Bitita (1982) (Publicação Póstuma).

Links Literalmente Legais (L³):

Documentário

Conversa com Bial

Literafro

QUARTO DE DESPEJO – MANIFESTAÇÃO DO DISCURSO FEMININO NA
LITERATURA BRASILEIRA

Recomendação de Leitura: Preconceito Linguístico de Marcos Bagno

 

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Procursu

fuga

Correu,

Caiu,

Desesperou-se,

Não olhou para trás enquanto fugia,

Correu mais um pouco, não se importou se o joelho estava ralado, se estava descalça, se tudo em si doía.

Atravessou a cidade aos gritos e mesmo assim ninguém a ouvia.

Seus gritos se tornaram silenciosos, suas dores passaram a não importar, era mais uma entre tantas e tantas na rua.

Correu, quando sentia que não valia mais apena correr,

Caiu e mesmo sem ter a onde se apoiar, insistiu em levantar.

Desesperou-se porque se viu sozinha no meio de uma rua desconhecida.

Esbarrou, empurrou, ninguém se importou,

Não houveram perguntas quanto ao seu desespero,

Não houveram respostas aos seus suplícios,

Não,

Não,

Não, era uma sequencias de negações que começavam nela e terminavam do outro lado de todas as ruas pelas quais passou.

Sorriu,

Sorriu entre as lágrimas que insistiam em cair,

Riu de si mesma por ter acreditado,

Se achou culpada por tudo que aconteceu,

Mentiu, mentiu para si mesma dizendo q estava tudo bem, “não estava”.

 

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Cora Coralina – Aninha e suas pedras

coracoralina

Não sei…

se a vida é curta

ou longa demais para nós.

Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,

se não tocarmos o coração das pessoas.

(Não sei)

Cora Coralina (1889-1985),  morreu quando eu ainda nem era nascida, em 1985 meus pais nem sonhavam em se conhecer. Quando conheci seus versos, eu já havia me tornado adulta, quase tão adulta quanto Aninha em algumas daquelas linhas.

Não te deixes destruir…

Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces.

Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha um poema

(Aninha e suas Pedras)

Me encantei por Cora entre os corredores frios e cinzas da UERJ, os versos pareciam ecoar por cada canto daquele lugar. Suas confissões de menina, faziam eco ao meu coração, suas linhas não eram nem versos e nem poesia, “era um jeito diferente de contar história”. Por mais que ela falasse dela, e eu soubesse disso, parecia que falava de mim, ao mesmo tempo que parecia falar de outras, sua voz não era singular, era plural. Era a voz de quem havia se deparado com muitas pedras e as transformado em poesia.

“Entre pedras

cresceu a minha poesia

Minha vida…

Quebrando pedras

e plantando flores”

(Das Pedras)

Ana Lins dos Guimarães Peixoto, era Cora e Cora era Ana, Aninha, a terceira das quatro filhas, orfã de pai praticamente ao nascer, estudou até a terceira série, teceu ainda na infância seus primeiros versos sem vírgulas, palavras ou linhas, mas que tinham cheiro de mato, de terra molhada, de bolo recém assado pelo vó.

“Era só olhos e boca e desejo

daquele bolo inteiro”

(Antiguidades)

Escreveu suas linhas para fugir de tudo que a machucava, eram sobre o que sentia, sobre o que viveu, e sobre o que ainda queria viver, eram lembranças de uma menina, contadas por uma senhora que continuava a devorar o mundo e a mostrar a ele todas as suas pedras, todas as suas lutas.

Aos 70 anos aprendeu datilografia para que suas poesias pudessem ser enviadas aos editores, aos 75 anos publicou seu primeiro livro, morreu aos 95 anos… Drummond dizia que ela era: “uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é”.

“Sendo eu mais doméstica do
Que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionalizada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a consciência
de ser autêntica.
Nasci para escrever, mas o meio,
o tempo,as criaturas e fatores
outros contramarcaram minha vida.
Sou mais doceira e cozinheira
do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes………
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.”

(Cora Coralina, quem é Você?)

Cora assinava aquilo que Aninha vivia, se tornou poesia em meio a resistência, era tão única quanto o nome inventado, fugiu, amou, vendeu livros, lavou roupa, sofreu a dor da perda, mais de uma vez, se fez doceira que conservava histórias, foi mulher rendeira que teceu seu próprio destino. Dentro de si, existiam tantas e tantas vozes, que ler suas linhas é como caminhar na corda que tece a vida, não só a de Aninha, mas a de Cora e também a minha.

Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,

sem preconceitos,

de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!

Links Literalmente Legais (L³):

Documentário Cora Coralina – todas as vidas

4 poemas de Cora Coralina 

A sabedoria de Cora Carolina em 4 poemas

Enciclopédia Itaú Cultural 

Cora Coralina – por Elder Rocha Lima

15 Poemas de Cora Coralina

 

 

Ansiedade, cartas, Crônica, depressão, Minhas Crônicas, Opinião, silêncio, Violência

Dor

passarinho

Passarinho vivia preso, não sabia voar;

Suas asas se embolavam nas entrelinhas dos seus livros preferidos;

Passarinho fazia ninho com aquilo que não queria ler;

Passarinho se perdia naquilo que não conseguia entender;

Passarinho se perdia entre os versos que ele cantava e ninguém entendia;

Passarinho queria voar, mas não podia.

Escrito para á pessoa que tropeçou com os seus sentimentos em mim….

Dor,

sentiu dor, mas não havia nada físico que lhe causasse aquilo que sentia.

Seu peito subia e descia, tudo doía, era angustiante, amedrontador.

É sentiu medo, o medo que ele sempre sentia mas ninguém sabia;

Tentou se distrair, mas miseravelmente falhou, se perdeu com facilidade em sua próprias palavras, não as entendia e já nem sabia porque antes ria;

Não se lembrava, não respirava, não enxergava;

Ele ouvia, ouvia tudo que não queria ouvir, queria que parassem, mas não paravam, isso o assustava.

Tentou dar um passo caiu;

Tentou escapar se descobriu preso;

Todas as portas estavam fechadas, trancadas, ele estava trancado, seus suspiros estavam trancados, suas dores estavam trancadas o rasgando por dentro.

Tudo cheirava a sangue, inclusive o tempo que não passava.

Sangue, ele sangrava.

Ele sangrava sem derramar uma gota de sangue, uma hora ou outra todo aquele sangue inundaria aquele lugar.

Doía e ninguém ligava, ninguém perguntava, ninguém se importava;

Doía tanto que ele tentou parar a dor e não conseguiu, aceitou que era castigo pelos pecados que ele nem sabia haver cometido;

Tentou achar o ar e não o sentiu, doeu, acelerou, ele não estava correndo, mas acelerou;

Seu coração acelerou, sentiu ainda mais medo;

Doeu,

Doeu,

Doeu;

O ar não saía, a dor não passava, ele tropeçava.

Chorou, se afogou nas próprias lágrimas, quis gritar, mas estava perdendo o ar;

As palavras não saíam, os versos não mais floresciam, tudo era momento e ele só queria que aquele momento acabasse;

Queria que parassem de gritar, que o ouvissem e o retirassem daquele lugar;

Que parassem os medos, que tudo parasse, que o tempo parasse, que o barulho parasse, que ele parasse.

Cozinha, Entrevistas, escolhas, Feminismo, Sem categoria

Entrevistando Elas I… O fantástico mundo das panelas de Andrenize.

Dias desses me questionei se eu realizei alguns dos projetos de 2017, entrevistar mulheres desconhecidas era uma desses projetos, no fim, esse foi um dos projetos que não vingaram por conta de uma preguiça inegável. Que 2018 se torne o ano das realizações e para dar início a essas realizações, vamos começar com uma entrevista realizada em agosto.

Conheço Andrenize, a entrevistada, a mais ou menos quinze anos, cursamos a segunda parte do fundamental juntas, e eu nunca a imaginei cursando gastronomia, a imaginava como advogada (altas tretas com resoluções nada suaves). Eu também não me imaginava cursando uma segunda faculdade, ainda mais uma de T.I. Quem somos e quem imaginamos ser na adolescência são duas coisas distintas.

Ela entregou seu projeto final em dezembro de 2017 e eu achava que devia no mínimo a publicação dessa entrevista para a homenagear.

Quando eu pensei nessa série de entrevistas, pensei em entrevistar mulheres desconhecidas, que eram estudantes ou haviam deixado de ser a pouco tempo, com o objetivo de mostrar esses variados ambientes de trabalho, suas visões de mundo, suas perspectivas tanto como estudantes tanto como parte do mercado de trabalho.

Andrenize que na época cursava gastronomia nos trás aquele meio termo entre o sonho e a realidade. Ela é competente, trabalha desde cedo, se encantou pela cozinha e por lá ficou (mas ela, ela não é só isso). Em meio a uma conversa nada convencional no aplicativo de mensagens, ela respondeu minhas perguntas, revelando parte do seu cotidiano como cozinheira e parte dos seus sonhos como ainda estudante.

Se deliciem com essa entrevista que deixa evidente os sonhos de todo e qualquer estudante e a realidade fática dos primeiros empregos antes do sucesso esperado. Onde se descobre que além do amor, da competência e do esforço dentro da cozinha é necessário conviver com aqueles pequenos incômodos como o machismo, a hierarquia e o jogo de poder… Cozinhar é complexo jovens, trabalhar na cozinha é ainda mais…

Nize
Acervo pessoal de Andrenize

  1. Fazer gastronomia foi uma escolha difícil? Quando você fala o que faz, a reação das pessoas é diferente do que imaginava?

sim. Pois eu imaginava ser outra pessoa, e ter outra profissão. Sonhei na adolescência ser contadora. Sim, as pessoas “julgam ” pela aparência talvez, e sim me dão outra profissão e não a minha de fato, cozinheira.  Acredito que a imagem de cozinheiro, seja uma vozinha gorducha, fofa, que cozinha muito para sua família, ou “uma mulher relaxada ” sem vaidades. E por isso talvez surpreenda as pessoas quando digo ser cozinheira rs…

  1. Você já trabalhou em alguns lugares, você acha que existe muita diferença entre o que você aprende nas aulas e a realidade de uma cozinha profissional?

Completamente diferente. Na faculdade aprendemos as técnicas, estudamos na teoria tudo típico de tal país (lugar) para conhecer profundamente aquela cultura e/ou história, para que possamos entender o prato quando for feito. Na prática (em sala de aula), fazemos tudo em pequenas quantidades para somente aprender as técnicas e como deve ser feito, seguindo as fichas técnicas e as ordens do professor. Sempre com muitos detalhes para ser perfeitos tanto cortes quanto sabor, com ingredientes originais para poder assim conhecer e levar no decorrer de sua carreira.

No mercado de trabalho, é correria, é grande quantidade, os alimentos feitos no seu preparo *mise en place . Tudo tem tempo de corte, é preciso agilidade, pensamentos rápidos, ter foco, ser objetivo se algo por um acaso der errado tem que existir um plano B de imediato.

  1. Um chef no qual você se espelha? Qual o motivo?

Não sigo, nem quero ser igual a nenhum chef. Na verdade, procuro disputar para ser a melhor. Não busco e nem tenho nenhum como exemplo.  Tenho uma inspiração, meu professor Ugo Werneck, ele é muito sábio e admiro a inteligência dele, ele possui doutorado em gastronomia. Na cozinha, o cara é quase um terrorista… Tudo e muito bem calculado, nada de desperdícios, tudo limpo. Essa é a inspiração que eu busco. Quero me formar, e ter mais a frente doutorado, e ser uma *gastróloga, que sempre terá as respostas da realidade de cada prato mundialmente falando e cultural.

  1. O que “todo mundo imagina”, mas não ocorre na cozinha profissional? O que “ninguém imagina” mais ocorre?

baiaodedois.jpg
Baião de dois feito por Andrenize

Todo estudante imagina que será chef de cozinha, na verdade “chef” e só um cargo normal, como engenheiro, administrador…  Imaginam que quando for para um hotel 6 estrelas ou restaurante vão direto para o fogão colocar em pratica o que aprendeu. E não. Não é assim, primeiro você é *Steward, lava a louça, lava o chão, pica os alimentos, corta os dedos, calos nas mãos, pele frágil…

O que ninguém imagina, mas ocorre, é que por mais que seja uma cozinha e tenha comida, na maioria das vezes o cozinheiro não come. Ou por falta de tempo, ou por ficar atarefado, ou por degustar tanto que se enjoa da comida.

Ninguém imagina que alimentos tão simples se tornam mágicos no prato e não acreditam simplesmente quando provam, pois sua técnica de *cocção faz muita diferença.  Ha disputa de cozinheiros para ver quem sobe primeiro para ser sub chef e querer mandar.

  1. O que te tira do sério, te desmotiva no ambiente de trabalho?

O que me desmotiva é não ter *mise en place, todo pré-preparo. O que me tira do sério é ver a cozinha um caos, bagunçada me irrita, assim como vê tudo sujo e/ou pessoas que fazem corpo mole.

  1. Já sentiu diferença no tratamento dos seus colegas por você ser mulher?

Sim a várias diferenças, porém difere de acordo com o local de trabalho. Já deram muito em cima (de mim) quando eu trabalhava em hotel, e em algumas tarefas também (sentia a diferença), por exemplo quando não aguentava pegar uma panela “meeega” grande o cozinheiro vinha e me dava aquela “mãozinha”. O machismo existe sim, e é muito chato lidar com isso, mas eu tento mostrar o meu melhor já que: “o cara se acha melhor por ser homem”. 

  1. Você acha que a ideia de que “Chefs são homens” e “cozinheiras são mulheres” existe no imaginário de muitas pessoas? Como você acha que essa ideia surgiu?

andrenizeeaspanelas.jpgEssa ideia é na verdade um mito. Chef pode ser mulher ou homem. Os homens que são machistas, não aceitam que uma mulher possa ser melhor, e que na verdade é.  Mulheres são mais rápidas e muito mais em ordem com o cumprimento de cada tarefa (risos).

Esse mito surgiu em 1756, desde a história dos padeiros, apesar de homens e mulheres fazerem pães em suas casas. Tendo relação também com a pré-história, quando o homem ia em busca da caça, e a mulher cuidava dos filhos ou plantava… Tem muito assunto dentro desse conceito, desse mito… Vários fatos do passado que contribuíram para essa cultura machista de hoje dentro das cozinhas ou em outros cargos..

  1. Existe diferença entre Chef e cozinheiro?

Chef é um cozinheiro que conseguiu o cargo “de chef”, então ele pode administrar as pessoas da/na cozinha como ele bem quiser, montar cardápio, retirar e colocar receitas.

Caso haja chef executivo, “ele manda o cardápio para o chef, e assim o chef para o sub chef, e o sub chef para o cozinheiro líder, e esse para os auxiliares (risos) ” , o cozinheiro executa as tarefas pedidas pelo seu sub chef. Isso vai depende do tamanho da cozinha, e quantas pessoas têm a sua volta.

Eu sou cozinheira (no local de trabalho) e acima de mim só tem o sub chef e abaixo de mim 2 estagiarias. (risos)… Cozinha de pequeno porte. E se fosse em um hotel eu seria a bactéria novata na brigada de cozinha mandada por todos.

  1. Qual a pior sensação que você já sentiu na cozinha? Em algum momento você já se questionou, se fez a escolha certa?

A pior sensação é com toda certeza é quando dá a hora da saída e chega aquele cliente chato, pede um prato, nesse prato ele pede um monte de frescura, “sem isso, sem aquilo, quero trocar isso por aquilo”. E ataca seriamente minha paciência.

Já me questionei se fiz a escolha certa sim, mas já trabalhei em outras profissões, tanto como vendedora ou na área da administrativa, e isso, me ataca muito mais os nervos, do que estar dentro de uma cozinha, onde eu me divirto com os cozinheiras e cozinheiros. Fogão não fala, panela também não, então não me irrita, gosto de montar pratos… É bom, legal e bonito (risos)…

  1. Qual a sensação mais compensadora de se fazer um prato?

Arrozmariaizabel.jpg
Arroz Maria Izabel feito por Andrenize.

Nossa, me sinto muito bem quando dizem: “Está lindo e gostoso”. A pouco tempo, lá onde eu trabalho, uma mesa com 6 pessoas, todos levantaram e bateram palmas para mim, no meio do salão, onde haviam outras mesas e outros clientes… Me elogiaram, fiquei muito feliz.

Outro dia, subiu (para o local onde fica a cozinha), um pai com o filho pequeno e curioso para conhecer a cozinha, ai o menino me viu e disse: “seu papa e muito gostoso” (risos)… E eu subi igual balão na Turquia. Criança não mente e quando gosta é porquê é bom mesmo rs…

  1. Qual a frase que você mais ouve enquanto cozinha?

“Prova aí, vê se tá bom de sal e pimenta.” Essa frase escuto mais de 100 vezes ao dia. (risos)

  1. Uma frase que tem um significado especial para seus dias na cozinha?

Nossa essa me pegou!!! “Pensar, planejar e executar.”                       

  1. Um conselho para quem escolheu essa área?

Não desista se errar, tudo se aprender se torna melhor. Viva com foco na cozinha e sempre seja realista. 

Glossário:   

*Mise en place – é uma expressão em francês, que significa “colocar no lugar”. É o ato de  deixar todos ingredientes e elementos utilizado na receita, ali do lado, prontos para serem utilizados.

*Gastróloga – Aquela que estuda ou é conhecedora da arte e da ciência culinária.

*Steward – aquele que conforme as normas do ambiente de trabalho, limpa, higieniza e organiza utensílios.

*cocção – Ato ou efeito de cozer, cozinhar.