Amor, Ansiedade, cartas, Crônica, depressão, escolhas, Minhas Crônicas, Opinião, Preconceito, silêncio, Violência

Doação involuntária

No mês do orgulho, dedico esse texto para todos que se sentem presos de alguma forma.

Tem pessoas que doam dinheiro, outras doam amor, tempo, paciência e você doou tudo que podia para fazer parte de algo que não te cabia.

Você escutou durante tanto tempo que não cabia nos lugares e ainda assim queria continuar a tentar caber, seus sonhos não cabiam ali, e por isso você aos poucos foi se esquecendo deles, sorria quando riam dos seus sonhos, foi se desfazendo deles pouco a pouco até não restar mais nada. 

Eu não sei se é possível viver sem sonhos, mas para você bastava caber ali naquele espaço que tudo já era suficiente, esse era seu sonho, caber ali naquele lugar tão irregular e desproporcional, por isso tentou, por isso se despedaçou até caber naquela forma tão desconfortável. 

Quando sua forma de agir passou a também não caber, aos poucos foi se aprisionando, podando seus gestos, sua voz, sua forma de existir. Foi se moldando para ainda assim caber naquele lugar apertado, você era maior do que aquele espaço frio e repleto de solidão. 

Foi doando cada parte sua para caber em um espaço que só te fazia chorar, era como ser um passarinho dentro de uma gaiola, passou a ver o mundo pelas grades, passou a retrair suas asas e a falar só o que queriam ouvir, era domesticado e não se importava com isso, aos poucos foram arrancando suas penas, uma a uma elas iam embora enquanto suas lágrimas caiam e ninguém parecia ligar. 

Todos pareciam gostar do que estava se tornando, olhavam para dentro da gaiola e sorriam, você se sentia desnudo diante a tantos olhares, eles jogavam migalhas como recompensa, no começo achou ser suficiente, mas depois, depois elas foram se tornando tão escassas quanto a satisfação em as receber. Um enorme vazio tomava conta de você, a liberdade era convidativa, mas se aprisionou de tantas formas que o mundo do lado de fora da gaiola passou a também não te caber.

A sensação de que não cabia em nenhum lugar passou a fazer parte de quem havia se tornado, então ficava na gaiola, se sentia preso mesmo quando as portas estavam abertas, não importa o que fazia e nem por quem fazia, sempre queriam mais, queriam seus sorrisos, seu apoio, sua boa vontade em ser quem não era, não era desejado ali, mas ainda assim não iriam te expulsar porque no fundo eles precisam te usar, até não ter mais serventia, precisam te fazer útil mesmo te lembrando todos os dias da sua ineficiência em se adequar a aquele espaço.

Como todo passarinho você também sentia falta de um lugar quente, de alguém que entendesse o seu choro triste em meio às conversas, de voar para outros lugares, mas tinha medo e tudo que te restava era olhar para o chão e só ver sua finitude caindo, não tinha como esconder, todos percebiam e se você já não cabia lá antes, agora então é que tudo passou a ser um completo desencaixe. 

O choro latente que invade sua garganta fez com que te jogassem para longe daquele lugar, sua melancolia crescente era um convite a solidão, não tinha para onde ir, não tinha onde ficar, era uma peça quebrada em um brinquedo de encaixe, tentou lançar sorrisos falsos para se convencer de que tudo ficaria bem, mas nada ficaria, não se reconhecia havia se perdido de si mesmo a tanto tempo que não se entendia. 

Parecia que o choro latente que durante tanto tempo estava guardado resolvia sair em meio a tantas mágoas pelo recém abandono, a gaiola estava quebrada assim como suas asas, seu corpo doía por todas as penas arrancadas, sua voz não saia, e tudo que conseguia era desesperadamente tentar entender os motivos de terem o jogado para fora, você se esforçou tanto para caber, para se encaixar, deu tanto de si, amou mesmo os que te fizeram chorar, sorriu quando só queria se esconder, e ainda assim isso não bastou…

Depois disso, tudo que você queria era juntar seus pedaços e se recolher em um lugar onde ninguém te machucasse, foi se afastando de quem se aproximava, sua voz antes tão dócil se tornava áspera diante a qualquer ameaça de introdução no seu espaço, não queria se permitir machucar novamente, ainda doía e parecia que não iria passar tão cedo, andar por lugares desconhecidos ainda era como pisar em cacos de vidro, não sabia voar para os lugares que queria conhecer, parecia que ninguém era suficientemente treinado para te ouvir. 

Manter diálogos era torturante, não tinha ânimo para falar com pessoas que deduzia que iriam embora na primeira oportunidade, não importava se elas demonstram querer ajudar catando suas penas, era difícil acreditar, não queria ficar perto dessas pessoas, não queria acreditar que elas estavam ali por você quando nem mesmo você estava. 

Então você sentiu, sentiu um toque no canto dos seus olhos, tentou forçar sua visão para entender o que acontecia, você não conseguiu expulsar todos, um riso contido se fez presente, tentou entender o que acontecia e percebeu que o riso era seu, se sentiu culpado pela própria felicidade, mesmo que ela fosse irrisória diante a tanta dor. A culpa também passou a ser sua companheira constante, quanto mais perto as pessoas chegavam mais distante você queria ficar. 

Sentia culpa por não conseguir caber dentro daquele espaço, sentia culpa por não se reconhecer, sentia culpa por não ter um lugar para ir e nem para onde voltar, sua culpa é tão intensa que ela não te deixava sentir nada além da dor de não poder construir novas relações, se sentia tão incompleto, tão inacabado que tudo que sentia era culpa por não ser suficiente para permanecer ali com aquelas pessoas… 

Não importa o quão suficiente seja, você nunca vai caber em lugar algum, nunca vai ser o esperado ou o desejado, mas não é só você, ninguém vai ser. Se permita ter ajuda na hora de juntar seus pedaços e construir um novo espaço, onde caiba você por inteiro e não só aos pedaços, conte seus sonhos mesmo que eles pareçam bobos, ouça sua voz mesmo que digam que você fala desimportâncias. Escute o seu silêncio e cresça com ele, você não está sozinho, há sempre alguém que pode escutar seu piar de lamentação e que vai te fazer sentir em casa em meio a um abraço quente.

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Filme antigo.

Ainda é cedo amor

Mal começaste a conhecer a vida

Já anuncias a hora de partida

Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

(Cartola)

Aos que se perdem no tempo e perdem tempo…

Algumas vezes seu relógio não marca as horas da forma correta, é como se o seu tempo não fosse cronológico, tem dias que seus minutos duram mais do que horas e outros tantos, suas horas passam mais rápido do que os segundos. É como olhar o mundo, seu mundo, sentado diretamente na cadeira de um cinema vazio, sem ninguém do seu lado, é como ser um espectador da própria vida. 

De repente não mais do que de repente, sua vida antes tingida de tantas cores parece ter virado um eterno filme em preto e branco, sem som, sem direção, a imprevisibilidade passou a fazer parte dos seus dias, você deseja que aquele longo e cansativo filme acabe mas ele não acaba ele se arrasta. Às vezes você assiste ao filme, outras tantas você se transforma em uma personagem coadjuvante que ninguém percebe por ali, uma personagem que arrasta uma longa corrente por todo o filme, é esse seu único enredo, ninguém repara nela, ninguém para, e todos os outros personagens evoluem, mas ela não.

Você percebe que parou e o mundo continuou a girar, todos a sua volta continuam da mesma forma seguindo com suas vidas, tropeçando em você e seguindo sem perguntar se estava tudo bem. As pessoas não param, não perguntam, apenas seguem, elas não querem perder tempo, elas não querem ter suas vidas estacionadas apenas por tropeçar em você. Quando você finalmente consegue se mexer, você percebe que o tempo passou, que ele correu e você nem percebeu. 

É uma batalha perdida, não tem como lutar contra o tempo, de alguma forma você não sabe como começou a se sentir assim, se foi algo de agora ou de muito antes de você se tornar adulto, mas aconteceu e agora tudo que você consegue fazer é assistir a esse filme que se repete dia após dia, você às vezes ri de forma involuntária, as piadas são sem graça mas você apenas faz, para não perder o costume, para que não percebam que as coisas mudaram. 

Algumas vezes é difícil manter o disfarce, e você desaba, e é como se aquele filme desastroso estivesse em um aparelho quebrado, ele é rebobinado várias e várias vezes para que você pudesse lembrar suas derrotas, seus medos e seus erros. Você desaba e se afoga naquele sentimento, não consegue escapar daquela correnteza, se sufoca, se esconde e se machuca. 

Seus suspiros são de desespero, afinal durante tantos anos o medo era tudo que você queria evitar e agora parece que de forma inevitável tudo que você tem pela frente é isso, o medo, o medo constante de se afogar e não ter ninguém ao seu lado, o medo de se tornar um eterno espectador da sua vida. O medo finalmente bateu à sua porta e se mostrou um hóspede bastante exigente, faz festas assustadoras que te tiram o sono, involuntariamente você tenta o expulsar, mas é como se aquela casa não fosse sua e você não tivesse direito a opiniões sobre quem vai ou quem fica. É um medo frio, vazio e silencioso, que te faz ficar doente. 

Viver se tornou sinônimo de esperar, você espera de forma impaciente para que aquela sensação vá embora e seus anseios que antes eram minimizados, se tornam cada vez mais presentes em sua vida. Você questiona o que faria se não tivesse tantos medos.

Dúvidas realmente pairam sobre a sua cabeça, será que as coisas mudaram e deixaram de ser tão prazerosas? Será que um dia elas foram realmente prazerosas? Constantemente sua cabeça roda e você se esquiva de dar respostas para perguntas que sabe que deveriam ser feitas. 

É complicado, seu tempo que antes era só seu, agora pertence a outras pessoas e você não sabe lidar bem com isso, sua cabeça entra em uma guerra constante para conseguir estabelecer objetivos. Tudo parece um eterno conta gotas de um remédio de gosto amargo, as gotas caem devagar e parece que nunca vai chegar a contagem final, você se angustia com aquela sensação de espera eterna. Você tenta ter paciência, tenta esperar, tenta desacelerar sua vida, mas se irrita fácil com o ritmo das gotas, elas caem devagar e parecem te machucar sempre. 

Não existe uma posologia para viver a vida, e por isso você se irrita constantemente pelo ritmo como as gotas caem, é vagaroso demais e você não se concentra naquilo, perde o foco, a contagem e não lida com o erro causado pelo seu cansaço de viver esse filme tão solitário. 

Constantemente você se força a dizer “tenho que continuar”, mas é um mantra falho, seu tempo que por vezes passa tão arrastado parece te impedir de continuar, parece te impedir de assistir esse filme solitário ao lado de outras pessoas, você anseia pelo final sem perspectiva de que ele se torne feliz, afinal você ultimamente dúvida do que é realmente felicidade. 

Por qual motivo você continua? Por qual motivo você não consegue ir por outro caminho, seguir por outra curva? Você se sente perseguido de forma constante pelo medo de errar… 

Sua mente tem muitos barulhos que não são seus, você diz sim quando sabe que deveria dizer não, utiliza vírgula onde deveria haver um ponto final, você escreve parágrafos novos para um assunto que já deveria ter terminado. 

Reinicia, olha para trás e respira, respira forte e tenta fazer o melhor que pode fazer, não o que você acha que as pessoas esperam que seja o melhor. A vida não vai parar, os minutos não vão voltar, mas você pode revisitar seus bons momentos, eles houveram, pode rir dos erros, comemorar as pequenas vitórias, mas não ultrapasse seus limites a vida é como um filme muito antigo, se você rebobinar ou avançar muito rápido, a fita agarra, o filme embola e tudo que vai restar é um drama mexicano como uma recordação que você não vai querer lembrar.

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Castelo de cartas

Aos amigos que em silêncio pedem socorro…

Se sintam abraçados.

Eu sei que você queria entender essa dor, que brotou dentro do seu peito de forma tão assustadora que é incapaz de dizer quando começou, foi tudo tão de repente…, um dia você dormiu, colocou a cabeça no travesseiro tranquilamente, e no outro, no outro seu coração parou repassando passo a passo de cada erro seu, de cada sorriso não correspondido, foi tudo abrupto demais, até para você que parecia pensar tão rápido.

Era como se lhe arrancassem o ar e retirassem junto às entranhas, a súbita vontade de gritar tomava conta de sua garganta, mas não saía som, não saía lágrima, não saía nada a não ser a dor, aquela maldita dor que te impedia de ter qualquer reação. 

Seus olhos pareciam doer mais do que o normal, sua vontade de permanecer de pé parecia desaparecer, o choro se tornou tão latente que a cada soluçar você parecia se despedaçar, não existia “eu te amo” que te fizesse sair daquele espaço onde se sentia seguro, enrolou-se nos lençóis e sufocou o primeiro grito enquanto se encolhia esperando por uma ajuda que nunca veio.

De forma súbita você ia desaparecendo, seu sorriso ia se esvaindo e deixava no lugar um leve levantar de lábios que dói cada vez que você tenta mascarar sua dor. De certa forma suas palavras também desapareciam, suas certezas iam embora a cada pequena tempestade dentro de si e aquelas malditas lembranças se tornavam tudo que restou.

Tentou engolir o choro e não adiantou, tentou esconder suas palavras e tudo que conseguiu foi às deixar sair de forma torta, era quase como se rosnasse, se defender do mundo foi a forma que encontrou para minimizar os ferimentos que ninguém enxergava, você focou naquilo que achava que era bom, que não podia criar decepções e se afundou ali, naquele lugar tão desproporcional a você, você começou a sentir que nem ali você cabia, mas era só aquilo que lhe cabia. 

Você já não se reconhecia, seu silêncio silenciava suas verdades, deixava sair apenas aquilo que queriam ouvir, respirava fundo buscando o ar, tentando se reconhecer em meio a toda aquela fantasia que criava, minimizou sua dor, estancou seus medos e se segurou em meio a incertezas, seu frágil coração vez ou outra demonstrava que aquilo não era certo, deixava cair a cada dia um pedaço do que um dia foi.

Se olhar no espelho se tornou tão complicado quanto olhar para as roupas abandonadas no fundo do armário, roupas que não lhe servem, mas que você deixava ali, se recusando a se desfazer daquelas lembranças. 

Você se encarava e não se reconhecia, o tempo passava, o choro te afogava, o soluço te impedia de respirar, era como encarar o passado e se perguntar o que ele tinha feito com você, a tortura permeava seus dias e você sentia vontade de esmigalhar aquele maldito vidro. Você repelia toda e qualquer circunstância que pudesse abalar o mundo frágil construído por você.

Olhar o relógio era uma lembrança constante que o tempo não voltava, os ponteiros não andavam na direção contrária, respirar fundo se fazia cada dia mais presente, e você não sabia se queria que o tempo passasse mais rápido ou mais devagar, afinal você parecia se afogar dentro de si mesmo, todo dia que amanhecia parecia um convite para ancorar sua vida em outro porto e modificar seu percurso. 

Era um convite constante que passava por sua cabeça, um convite que você nunca seguia, um convite repleto de incertezas em um mundo construído com cartas tortas que a qualquer vento poderia derrubar, era um mundo repleto de lembranças que iam e voltavam com a mesma velocidade que os ponteiros do relógio andavam. 

Você queria aceitar, eu sei que queria, mas era tão difícil, você tinha medo de tudo desabar com tamanha velocidade que seria impossível as colocar no lugar sozinho, afinal você realmente se achava sozinho, seu choro não era ouvido, e seus medos pareciam te trancar em uma sala deserta e escura sem portas ou janelas, ninguém parecia te ouvir, ninguém parecia ligar, era doloroso demais se encontrar sozinho em um mundo onde verdades são silenciadas e sorrisos falsos se tornam verdadeiros, você se engasgava forte com suas dores, e se despedaçava sem ninguém perceber, ancorar em outro porto exigia uma coragem que você não sabia ter. 

Você respirava fundo buscando soluções para tudo que sua mente tão ágil reproduzia de forma tão insana, não sentiu o abraço, ignorou os pedidos de calmaria e correu em direção contrária ao mundo, mentiu quando perguntaram qual era o problema, disse não quando queria dizer sim, a sensação de casa cheia e coração vazio nunca deixou você. 

Se eu fosse te dar um conselho seria para se ouvir e desabar você mesmo esse castelo de cartas tortas, desaba, ele já tá bambo a muito tempo, deixa cair as lágrimas, o medo e as incertezas, se já não te cabe mais por qual motivo continuar no mesmo lugar?

Respira devagar, você vai conseguir. Olha para trás e vê tudo que você já construiu, você tem sorte, tem mãos que vão te reerguer quando cair, pode ancorar em qualquer porto que você não vai deixar para trás suas conquistas, mas também vai levar junto suas lembranças, lembranças boas e ruins, elas são parte de quem você é, se o castelo realmente desabar, você vai juntar carta a carta e remontar aquele castelo, montar de uma forma que te agrade, que você se encaixe e se reconheça ali dentro. Vai construir e reconstruir esse castelo até você se reconhecer como parte dele.

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Carolina Maria de Jesus – Diário de uma Favelada

200px-Carolina_Maria_de_Jesus_assinando_seu_livro_Quarto_de_Despejo_em_1960

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), foi mais uma das escritoras que conheci durante minha graduação, especificamente durante uma disciplina que estudava a relação de identidade e diários. É estranho tentar entender como uma das escritoras mais importantes de nossa história, reconhecida mundialmente, só me foi apresentada na graduação, no auge dos meus vinte e poucos anos.

Quarto de despejo se tornou o livro que a fez ser conhecida, as palavras que juntas compõe esse livro, se tornam importantes para podermos entender a sociedade da década de 50, pela perspectiva de Carolina, uma catadora de lixo, mulher negra, periférica e mãe solteira, que dia a dia matava seus leões dentro e fora das vielas paulistana.

Sofreu violência de gênero, social e racial, suas linhas não nos fazem sorrir, não nos iludem, são duras, é a realidade e não a fantasia, não teve bolo de aniversário na festa de sua filha, porque não se tinha dinheiro nem para o pão.

Carolina retratou em seu diário muito mais do que ela imaginou, escreveu como quem conta um segredo a um amigo, confessou suas angustias diante a fome de seus filhos e os julgamentos de seus vizinhos, ela questionou, não se calou e gritou para que a ouvissem.

Não queria se submeter a homem algum, era mãe solteira, foi mãe de filhos que nem eram seus para os proteger dos julgamentos que ela tão bem conhecia, se preocupou quando eles demoravam a voltar, abraçou apertado, tão apertado que quase se tornou possível deslumbrar do momento enquanto se lia.

Quarto de despejo foge dos padrões da nossa literatura, ou melhor foge dos padrões da nossa norma culta da linguagem, sua protagonista é negra, pobre e desbocada, trabalhava de sol a sol e lutava para que sua vida não se resumisse a sua casa de madeira, Carolina não era só escritora também era uma leitora que também lia o mundo.

Literatura Marginal, é assim que se chama essa escrita, livre das tradicionais amarras que costumamos ser apresentados na escola, a forma como falamos e escrevemos também é motivo de exclusão, a normatização da linguagem é um instrumento de dominação, onde só se valida o que uma pessoa fala se “sua fala” condizer com as regras de linguagem. Normatizar a linguagem, é excluir outras formas de expressão, outras culturas.

Estudei em escola pública durante minha vida inteira, salvo na educação infantil, eu sei a importância que a literatura de Carolina tem para alunos periféricos assim como tem para mim. Carolina escrevia sobre a sua vida, seus dilemas, sobre mais de cinquenta décadas atrás, quando o Brasil começa a se desenvolver economicamente, e ainda assim nós encontramos tantas semelhanças.

Carolina não se resumiu a quarto de despejo, que era bem mais do que sua casa de madeira, quarto de despejo era a cidade de São Paulo, a sociedade que a excluía de todas as formas possíveis, como se gritasse a todo instante que o lugar dela e de seus filhos não fosse no asfalto.

Quarto de despejo não foi seu único livro, na verdade foi seu diário, antes dele ela havia tentado publicar crônicas e poemas, mas só com seu diário, que ela passou a ser notada e justamente pelo motivo que era excluída. Apesar do livro de rendido bem, Carolina viu pouco desse dinheiro, na verdade ela viu o suficiente para que saísse da favela e fosse morar em um pequeno sítio na periferia de São Paulo.

Outros Livros:

Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963). O volume Diário de Bitita (1982) (Publicação Póstuma).

Links Literalmente Legais (L³):

Documentário

Conversa com Bial

Literafro

QUARTO DE DESPEJO – MANIFESTAÇÃO DO DISCURSO FEMININO NA
LITERATURA BRASILEIRA

Recomendação de Leitura: Preconceito Linguístico de Marcos Bagno

 

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Pequeno Viajante

Gostaria de compartilhar mais um texto que fiz para mais um dos meus amigos. Uma mesma palavra pode ser usada de muitas formas….

arvoresabedoria
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Um dia conheci um menino meio perdido por esse mundo…

Pequeno,

Ele era pequeno na forma de agir,

tinha um sorriso gigante mas que quase ninguém via,

mãos curiosas que viviam agindo escondido,

passos tão curtos quanto os de um idoso.

Seus olhos pequenos eram atentos aos pequenos detalhes.

Suas palavras eram curtas e seus silêncios longos;

As vezes ele se perdia,

se perdia no tempo,

se perdia nos lugares,

se perdia até dele mesmo,

as vezes ele se encontrava em meio a uma bagunça que ele nem lembrava ter feito.

As vezes ele arrumava a bagunça,

outras tantas não…

ele precisava da bagunça para poder viajar…

Ele gostava de viagens longas e intermináveis;

Seus lugares preferidos não estavam no mapa,

eram lugares tão secretos, mas tão secretos, que as vezes ele esquecia de como se chegava lá,

as vezes ele lembrava: tudo que precisava era se perder nas entrelinhas do silêncio.

Ele se perdia,

se perdia

e se perdia,

era naquele silêncio tão barulhento que suas aventuras aconteciam,

derrotar vilões, salvar pessoas, invadir planetas,…

eram aventuras tão mágicas que ele se esforçava ao máximo para não esquecer,

as vezes ele esquecia, e aí ele tinha que viajar novamente,

talvez por isso ele goste tanto de colecionar lugares inesperados:

ilhas perdidas,

países nunca descobertos,

planetas fora do sistema solar,

abraços intergalácticos.

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Muito pouco, (IN)sanidade.

loucuraa

Pronto

Agora que voltou tudo ao normal

Talvez você consiga ser menos rei

E um pouco mais real

 (Muito pouco, Moska)

Olhou…, não reconheceu aquele espaço, era tudo tão igual a antes, mas ainda assim tão diferente, como não percebeu que tudo mudou?

Seus sonhos não estavam no lugar certo, estavam todos encaixotados, empoleirados, deixados de lado no canto de um quarto empoeirado.

Andou por todos os cantos, mas nenhum canto era o seu. Olhou-se no espelho e não se reconheceu, as roupas, o cabelo, o tênis, era o seu corpo, mas não era ele. Escorregou os dedos no espelho e sentiu o toque gelado, não havia diferença no reflexo e em si. Quando ficou assim?

Afastou a mão e levou ao rosto, não sentiu o habitual sorriso, nem se lembrava quando aquele canto dos lábios deixou de abrigar sua alegria.

Viver tá me deixando louco

Não sei mais do que sou capaz

Gritando pra não ficar rouco

Em guerra lutando por paz

Seus pés não estavam descalços mais ainda assim doíam como se estivesse andando a horas em círculos, era tudo sempre igual, deslizou-se por qualquer parede, respirou fundo e se sufocou com as lembranças.

A música que tocava era a mesma de ontem, e de todos os dias anteriores, era um disco repetido que o lembrava que o condenaram por não seguir a um mesmo ritmo, por não andar na linha, por não seguir à realidade dos fatos.

Era tudo tão chato, era sempre mais do mesmo. Era insuportável ver a mesma paisagem da janela, ter seus passos milimetricamente controlados, se sufocar dentro da roupa e de si mesmo. O suspiro sobrepôs à música, foi alto e desesperador, era um grito sem palavras que ecoou por todos os cantos.

Fechar os olhos não adiantava, ele não esqueceria, mas não reconhecia aquela certeza que tantos tinham como absoluta.

Pesos e medidas não servem

Pra ninguém poder nos comparar

Porque

Eu não pertenço ao mesmo lugar

Viver…, quando viver passou a ser sinônimo de “não viver”? Seus dias eram eternas tempestades, tropeçava nos próprios pés, eram os mesmos gostos, os mesmos caminhos, e aquilo, aquilo não bastava.

Era tudo tão cinza, uma eterna neblina que escondia tudo inclusive a si.

Sentiu saudades dos seus sonhos e abriu uma das caixas, eram tantos, lembrava-se de quando eles transbordavam de dentro de si e inundavam o mundo. Respirou fundo, sentiu todo aquele aroma de liberdade, quando havia se contentado em aprisionar seus sonhos?

Mal percebeu quando suas mãos rasgaram cada uma das caixas, o perfume da liberdade inundava a casa, as roupas estavam o sufocando, ele não era o mesmo, preferia transbordar a se conter.

Deixou-se transbordar enquanto respirava cada sonho, cada lembrança, cada parte daquela realidade particular, que criou para sobreviver dentro da “verdadeira” realidade tão insana.

E muito pra mim é tão pouco

E pouco é um pouco demais

Viver tá me deixando louco

Não sei mais do que sou capaz

  • Música utilizada
  • Muito Pouco – Paulinho Moska
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Entrevistando Elas I… O fantástico mundo das panelas de Andrenize.

Dias desses me questionei se eu realizei alguns dos projetos de 2017, entrevistar mulheres desconhecidas era uma desses projetos, no fim, esse foi um dos projetos que não vingaram por conta de uma preguiça inegável. Que 2018 se torne o ano das realizações e para dar início a essas realizações, vamos começar com uma entrevista realizada em agosto.

Conheço Andrenize, a entrevistada, a mais ou menos quinze anos, cursamos a segunda parte do fundamental juntas, e eu nunca a imaginei cursando gastronomia, a imaginava como advogada (altas tretas com resoluções nada suaves). Eu também não me imaginava cursando uma segunda faculdade, ainda mais uma de T.I. Quem somos e quem imaginamos ser na adolescência são duas coisas distintas.

Ela entregou seu projeto final em dezembro de 2017 e eu achava que devia no mínimo a publicação dessa entrevista para a homenagear.

Quando eu pensei nessa série de entrevistas, pensei em entrevistar mulheres desconhecidas, que eram estudantes ou haviam deixado de ser a pouco tempo, com o objetivo de mostrar esses variados ambientes de trabalho, suas visões de mundo, suas perspectivas tanto como estudantes tanto como parte do mercado de trabalho.

Andrenize que na época cursava gastronomia nos trás aquele meio termo entre o sonho e a realidade. Ela é competente, trabalha desde cedo, se encantou pela cozinha e por lá ficou (mas ela, ela não é só isso). Em meio a uma conversa nada convencional no aplicativo de mensagens, ela respondeu minhas perguntas, revelando parte do seu cotidiano como cozinheira e parte dos seus sonhos como ainda estudante.

Se deliciem com essa entrevista que deixa evidente os sonhos de todo e qualquer estudante e a realidade fática dos primeiros empregos antes do sucesso esperado. Onde se descobre que além do amor, da competência e do esforço dentro da cozinha é necessário conviver com aqueles pequenos incômodos como o machismo, a hierarquia e o jogo de poder… Cozinhar é complexo jovens, trabalhar na cozinha é ainda mais…

Nize
Acervo pessoal de Andrenize

  1. Fazer gastronomia foi uma escolha difícil? Quando você fala o que faz, a reação das pessoas é diferente do que imaginava?

sim. Pois eu imaginava ser outra pessoa, e ter outra profissão. Sonhei na adolescência ser contadora. Sim, as pessoas “julgam ” pela aparência talvez, e sim me dão outra profissão e não a minha de fato, cozinheira.  Acredito que a imagem de cozinheiro, seja uma vozinha gorducha, fofa, que cozinha muito para sua família, ou “uma mulher relaxada ” sem vaidades. E por isso talvez surpreenda as pessoas quando digo ser cozinheira rs…

  1. Você já trabalhou em alguns lugares, você acha que existe muita diferença entre o que você aprende nas aulas e a realidade de uma cozinha profissional?

Completamente diferente. Na faculdade aprendemos as técnicas, estudamos na teoria tudo típico de tal país (lugar) para conhecer profundamente aquela cultura e/ou história, para que possamos entender o prato quando for feito. Na prática (em sala de aula), fazemos tudo em pequenas quantidades para somente aprender as técnicas e como deve ser feito, seguindo as fichas técnicas e as ordens do professor. Sempre com muitos detalhes para ser perfeitos tanto cortes quanto sabor, com ingredientes originais para poder assim conhecer e levar no decorrer de sua carreira.

No mercado de trabalho, é correria, é grande quantidade, os alimentos feitos no seu preparo *mise en place . Tudo tem tempo de corte, é preciso agilidade, pensamentos rápidos, ter foco, ser objetivo se algo por um acaso der errado tem que existir um plano B de imediato.

  1. Um chef no qual você se espelha? Qual o motivo?

Não sigo, nem quero ser igual a nenhum chef. Na verdade, procuro disputar para ser a melhor. Não busco e nem tenho nenhum como exemplo.  Tenho uma inspiração, meu professor Ugo Werneck, ele é muito sábio e admiro a inteligência dele, ele possui doutorado em gastronomia. Na cozinha, o cara é quase um terrorista… Tudo e muito bem calculado, nada de desperdícios, tudo limpo. Essa é a inspiração que eu busco. Quero me formar, e ter mais a frente doutorado, e ser uma *gastróloga, que sempre terá as respostas da realidade de cada prato mundialmente falando e cultural.

  1. O que “todo mundo imagina”, mas não ocorre na cozinha profissional? O que “ninguém imagina” mais ocorre?

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Baião de dois feito por Andrenize

Todo estudante imagina que será chef de cozinha, na verdade “chef” e só um cargo normal, como engenheiro, administrador…  Imaginam que quando for para um hotel 6 estrelas ou restaurante vão direto para o fogão colocar em pratica o que aprendeu. E não. Não é assim, primeiro você é *Steward, lava a louça, lava o chão, pica os alimentos, corta os dedos, calos nas mãos, pele frágil…

O que ninguém imagina, mas ocorre, é que por mais que seja uma cozinha e tenha comida, na maioria das vezes o cozinheiro não come. Ou por falta de tempo, ou por ficar atarefado, ou por degustar tanto que se enjoa da comida.

Ninguém imagina que alimentos tão simples se tornam mágicos no prato e não acreditam simplesmente quando provam, pois sua técnica de *cocção faz muita diferença.  Ha disputa de cozinheiros para ver quem sobe primeiro para ser sub chef e querer mandar.

  1. O que te tira do sério, te desmotiva no ambiente de trabalho?

O que me desmotiva é não ter *mise en place, todo pré-preparo. O que me tira do sério é ver a cozinha um caos, bagunçada me irrita, assim como vê tudo sujo e/ou pessoas que fazem corpo mole.

  1. Já sentiu diferença no tratamento dos seus colegas por você ser mulher?

Sim a várias diferenças, porém difere de acordo com o local de trabalho. Já deram muito em cima (de mim) quando eu trabalhava em hotel, e em algumas tarefas também (sentia a diferença), por exemplo quando não aguentava pegar uma panela “meeega” grande o cozinheiro vinha e me dava aquela “mãozinha”. O machismo existe sim, e é muito chato lidar com isso, mas eu tento mostrar o meu melhor já que: “o cara se acha melhor por ser homem”. 

  1. Você acha que a ideia de que “Chefs são homens” e “cozinheiras são mulheres” existe no imaginário de muitas pessoas? Como você acha que essa ideia surgiu?

andrenizeeaspanelas.jpgEssa ideia é na verdade um mito. Chef pode ser mulher ou homem. Os homens que são machistas, não aceitam que uma mulher possa ser melhor, e que na verdade é.  Mulheres são mais rápidas e muito mais em ordem com o cumprimento de cada tarefa (risos).

Esse mito surgiu em 1756, desde a história dos padeiros, apesar de homens e mulheres fazerem pães em suas casas. Tendo relação também com a pré-história, quando o homem ia em busca da caça, e a mulher cuidava dos filhos ou plantava… Tem muito assunto dentro desse conceito, desse mito… Vários fatos do passado que contribuíram para essa cultura machista de hoje dentro das cozinhas ou em outros cargos..

  1. Existe diferença entre Chef e cozinheiro?

Chef é um cozinheiro que conseguiu o cargo “de chef”, então ele pode administrar as pessoas da/na cozinha como ele bem quiser, montar cardápio, retirar e colocar receitas.

Caso haja chef executivo, “ele manda o cardápio para o chef, e assim o chef para o sub chef, e o sub chef para o cozinheiro líder, e esse para os auxiliares (risos) ” , o cozinheiro executa as tarefas pedidas pelo seu sub chef. Isso vai depende do tamanho da cozinha, e quantas pessoas têm a sua volta.

Eu sou cozinheira (no local de trabalho) e acima de mim só tem o sub chef e abaixo de mim 2 estagiarias. (risos)… Cozinha de pequeno porte. E se fosse em um hotel eu seria a bactéria novata na brigada de cozinha mandada por todos.

  1. Qual a pior sensação que você já sentiu na cozinha? Em algum momento você já se questionou, se fez a escolha certa?

A pior sensação é com toda certeza é quando dá a hora da saída e chega aquele cliente chato, pede um prato, nesse prato ele pede um monte de frescura, “sem isso, sem aquilo, quero trocar isso por aquilo”. E ataca seriamente minha paciência.

Já me questionei se fiz a escolha certa sim, mas já trabalhei em outras profissões, tanto como vendedora ou na área da administrativa, e isso, me ataca muito mais os nervos, do que estar dentro de uma cozinha, onde eu me divirto com os cozinheiras e cozinheiros. Fogão não fala, panela também não, então não me irrita, gosto de montar pratos… É bom, legal e bonito (risos)…

  1. Qual a sensação mais compensadora de se fazer um prato?

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Arroz Maria Izabel feito por Andrenize.

Nossa, me sinto muito bem quando dizem: “Está lindo e gostoso”. A pouco tempo, lá onde eu trabalho, uma mesa com 6 pessoas, todos levantaram e bateram palmas para mim, no meio do salão, onde haviam outras mesas e outros clientes… Me elogiaram, fiquei muito feliz.

Outro dia, subiu (para o local onde fica a cozinha), um pai com o filho pequeno e curioso para conhecer a cozinha, ai o menino me viu e disse: “seu papa e muito gostoso” (risos)… E eu subi igual balão na Turquia. Criança não mente e quando gosta é porquê é bom mesmo rs…

  1. Qual a frase que você mais ouve enquanto cozinha?

“Prova aí, vê se tá bom de sal e pimenta.” Essa frase escuto mais de 100 vezes ao dia. (risos)

  1. Uma frase que tem um significado especial para seus dias na cozinha?

Nossa essa me pegou!!! “Pensar, planejar e executar.”                       

  1. Um conselho para quem escolheu essa área?

Não desista se errar, tudo se aprender se torna melhor. Viva com foco na cozinha e sempre seja realista. 

Glossário:   

*Mise en place – é uma expressão em francês, que significa “colocar no lugar”. É o ato de  deixar todos ingredientes e elementos utilizado na receita, ali do lado, prontos para serem utilizados.

*Gastróloga – Aquela que estuda ou é conhecedora da arte e da ciência culinária.

*Steward – aquele que conforme as normas do ambiente de trabalho, limpa, higieniza e organiza utensílios.

*cocção – Ato ou efeito de cozer, cozinhar.

 

Ansiedade, cartas, Crônica, escolhas, Opinião, Saúde, Sem categoria

Carta para a minha ansiedade

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É estranho escrever uma carta para a minha ansiedade, nunca pensei que fosse fazer algo assim, mas me sinto levemente tentada a te contar como são meus dias em sua, nada, doce companhia, ou ao menos um dos dias.

Quando estava na calçada esperando todos os carros pararem eu encarei um ponto qualquer, era uma loja de roupas masculinas, estava exposto uma calça jeans muito bonita e ao lado dela tinha um vendedor com belas pernas, tinha perdido o sinal verde para atravessar. Desviei meu olhar das pessoas que me encaravam e quando o sinal abriu atravessei correndo, peguei o ônibus e me concentrei nas palavras cruzadas, eram tantas em tantas linhas que não pude me impedir de divagar entre os milhares de significados e como cada um deles se encaixava em minha vida.

Lá estava você, com seu sorriso sacana, me fazendo bater a perna esquerda desesperadamente no assoalho, enquanto marcava aquelas letras no papel, minha mente divagava pela letra de uma música qualquer de algum desconhecido, enquanto tentava a entender, escrevia as tais frases no papel que só deveria escrever letras. Minha garganta secou repentinamente quando no meio de uma outra música, uma frase me fez lembrar de algo que eu preferia esquecer, fiquei meio sem ar, e minhas mãos nervosas quase sem querer começaram a dobrar as folhas da revistinha.

Estava transpirando sem nem estar calor, sequei minhas mãos na camisa amarrota, e apertei a caneta…

Você é definitivamente muito sacana, guardei a revistinha antes que eu a rasgasse, revirei meus olhos enquanto procurava por meu celular para ouvir minha própria música, o fone estava embolado, desesperadamente, tentei desatar aquele nó tão simples, mais foi complicado e entre um bufar e outro acabei acidentalmente arrebentando um dos fones, fiquei frustrada, a música de outrem continuava a tocar, ela não acabava, não me deixou me concentrar na minha própria música.

Quando mal percebi já estava perto da minha descida, tive que correr para dar sinal, não que eu estivesse atrasada, desci com calma, enquanto caminhava para casa a cada passo, a cada detalhe, pensava em algo diferente, parecia que pisava na minha própria mente, era uma bagunça particular que ninguém era capaz de entender, mais uma vez absorta em meus próprios pensamentos cheguei em casa, fui direto para o banho para esfriar a mente, não adiantou, comi qualquer coisa enquanto pensava que não podia perder tempo. Eu já tinha perdido demais.

Qual o motivo de você sempre me visitar quando tenho que resolver algo sério, quando tenho que fazer algo que já deveria ter feito? Qual a porcaria do motivo de você aparecer, e como quem não quer nada, compilar em uma seleção premiada, todos os meus erros e medos, enquanto eu desesperadamente tento sair da minha encruzilhada pessoal?

Você continuou lá assombrando minha mente enquanto eu digitava os parágrafos do artigo que deveria estar pronto a muito tempo, lá estava você me encarando, me fazendo revisar aquelas linhas em meio a culpa de não ter feito antes, de não conseguir fazer mais rápido, de não conseguir me inspirar para escrever. Parei, respirei, pensei em tudo que planejo, tantas vezes com altos detalhes e não consigo realizar, me contorço na cadeira e tento alcançar um dos livros para o referencial, me pergunto quando marquei aquelas frases…?

Você continuou ali, enquanto eu aumentava o som nos meus fones, e lia as linhas dos livros que eram minhas referências, minha mente estava tão bagunçada ao seu lado que eu mal percebia quando saia de um texto e entrava em outra leitura, mas eu não conseguia transcrever todos aqueles pensamentos para o papel, não, quanto mais eu lia, quanto mais eu refletia, mais eu me perdia, tudo era muito rápido e eu não conseguia me acalmar para conseguir transcrever, quando eu comecei finalmente a escrever meus olhos cravaram no relógio, e mesmo que ele não fizesse o famoso TIC TAC, minha mente fazia, meus dedos não acompanhavam o tempo, ele era mais rápido, então um bolo subia na minha garganta e eu o tossia.

A tosse era quase uma forma de colocar aquele bolo invisível para fora, você sabe, eu sei, todo mundo sabe, não tinha nada subindo do meu peito para minha garganta, até porque o caminho percorrido era algo biologicamente impossível, biologicamente não é mentalmente, não adiantava eu saber, aquela bola que queimava por onde passava continuava a subir e a descer, eu não conseguia expelir, ela se dissipava na minha barriga, e eu a ignorava, continuava escrevendo, a essa altura qualquer ruído me trazia desconforto.

Entre o desligar ou não a música, meus dedos batiam freneticamente na mesa eu encarava as unhas malfeitas, eu deveria ter mais vaidade, minhas mãos instintivamente vão aos meus cabelos, me lembrando que eu não tinha nem penteado decentemente antes de sair de casa, eu começo a coça-los enquanto fico nervosa e penso em todas as vezes que fiz isso, quem liga? Eu não ligo, não eu não ligo, não eu achava que não ligava até a hora que você apareceu na minha vida, e me fez pensar esse monte de coisas, maldita ansiedade, eu penso na minha idade, no meu dinheiro, nas idas e vindas que não tive… Droga, eu não aguento mais essa música, eu não consigo escrever, eu tenho 25 anos e não tenho a menor ideia do que fazer…

Enquanto parava o maldito “play” meus olhos desviaram para a barra de pesquisa, e mesmo que a música tenha parado ela continua a tocar repetidamente na minha mente enquanto transito pelas redes sociais, pessoas, barra de pesquisa, curtir, comentar, desviar, compartilhar, quando olhei novamente o relógio, tinha perdido muito tempo, minhas pernas balançavam freneticamente na cadeira, para um lado e para o outro, me perdi naquele movimento incansável enquanto me desesperava por todas as linhas que não escrevi.

Tentei me concentrar novamente mas tudo que consegui fazer foi pensar na sobremesa que não comi, ela ainda estava esperando por mim, estava lá, na geladeira, mal percebi quando minhas mãos alcançaram aquele pote, caminhei com ele para o quarto novamente, sentei, respirei, comi, digitei, digitei, digitei, e quando finalmente só faltava a conclusão, ouço o apito de mensagens do smartphone soar, tento continuar digitando, ele soa novamente, ele soa freneticamente, busco com os olhos a onde o deixei e o encontro ali, jogado ao lado da pilha de livros de distintos assuntos, que eu deveria ter lido e não li.

Olhei as mensagens, respirei, me frustrei, falei sozinha, briguei sozinha, ameacei digitar, digitei, apaguei, digitei, não revisei, enviei, me arrependi. Droga! Me responderam, continuaram a responder, enviei, enviei novamente, desisti de enviar porque perdi o interesse na conversa, ri revirando os olhos, me sentei no chão enquanto buscava algo legal para ouvir enquanto ignorava as mensagens, descobri um texto legal, legal mesmo, muito legal, me deu ideia do que escrever.

Me sentei na cadeira e li meu texto de cabo a rabo fazendo novos apontamentos, me perdi na hora, na música, no texto, nas minhas divagações, mal percebi quando terminei, parecia que tinha demorado mais do que realmente tinha, não quis revisar, não sou obrigada a revisar, eu sou obrigada a revisar, mas enviei mesmo assim, a orientadora revisa, o mundo revisa e eu durmo, ou não…

Tomei um banho quente, e cai na cama, olhei para as paredes estava escuro mal dava para ver os rabiscos que tinha feito, respirei tentando fechar os olhos e dormir, não consegui, contei até cem, não dormi, imaginei mil e uma coisas, me arrependi de comer o doce, bebi agua, li as mensagens, pensei em responder, me arrependi, pensei no rapaz sexy que não sabia o nome, endereço ou que rosto tinha, mas sabia como eram suas pernas, que pernas, queria ter visto seu rosto, minha mente voou, voou longe me fazendo pensar que deveria ter entrado naquela loja, ter perguntado alguma coisa, me frustrei, tentei fechar os olhos e o nervosismo voltou a aparecer, eu deveria ter revisado o texto, e se não gostarem, e se tiver muitos erros, e se…, droga!

Capitalismo, escolhas, Filmes, NETFLIX, Opinião, Sem categoria

Consumindo reflexões…

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Fonte na capa da revista…

Eu tinha dezenas de textos para terminar, mas nenhum com toda certeza me colocou tanto para pensar quanto esse, sério… Sábado em meio a oxitocina e o sono, em uma conversa que não consigo exatamente dizer como começou, eu acabei percebendo, mais uma vez, quão impulsiva sou.

Eu tenho muitos amigos/irmãos por essa vida, isso não é segredo para quase ninguém, e esse meu irmão/amigo em questão estava conversando sobre o seu futuro TCC, sabe quando você escuta tudo atentamente para não perder nenhuma palavra, foi esse o caso, um pouco por causa do sono e outro tanto porque era realmente interessante, o cara quer falar de consumo, os motivos de comprar e os motivos para as coisas existirem, ele faz curso designe, gente eu nunca pensei nisso e eu obviamente devaneei sobre isso com ele, possivelmente ele não me entendeu, eu falo meio desordenadamente quando estou animada e mais ainda quando estou com sono.

Desculpa!!!!

Em meio a muitas frases sem sentido, ditas por mim claro, eu acabei refletindo que eu sou muito impulsiva em muitos fatores, sério quando minha irmã/amiga vem assistir algum filme aqui em casa ela faz diversas anotações a respeito do filme, eu faço as sociais ou as não-convencionais, enfim, eu raramente quero saber o motivo de ter se feito aquilo, sou a “consumidora que só consome e não pensa”, Céus…, que vergonha…

Sou impulsiva,

se eu quero eu compro, se sinto fome como, se estou entediada assisto algo, se quero pensar ouço música, é simples… ou não.

Provavelmente por esse fato de só consumir sem refletir, eu realmente seja bem ruim em fazer resenhas, por mais que eu faça as devidas críticas sócias, as quais fui treinada durante quatro anos de graduação para fazer, eu ainda assim não reflito o suficiente para me sentir motivada a escrever, mesmo com os muitos links criados na minha mente durante o filme.

Não tenho a menor ideia se esse fato devesse a eu não ter paciência de assistir filmes, e menos ainda de assistir séries, e o pior é que eu admiro a forma como são produzidos o envolvimento e o comprometimento, mas quando assisto é para basicamente consumir, alimentar o lucro alheio e obviamente me divertir.

Em meio a muitas reflexões ao longo desses dias, eu acabei percebendo que para minha total felicidade eu gosto de ler, leio realmente muito rápido, porém só se a leitura me agradar, do contrário eu não consigo ler e isso me bloqueia, é isso aconteceu com alguns textos da faculdade. Mas voltando ao momento em que eu curto a leitura, quando eu gosto eu me vício, a leitura se torna uma droga tão prazerosa que eu começo a pesquisar a respeito do que eu li, ao menos isso…

Meu momento de felicidade repentina acabou no instante em que percebi, que só pesquiso a respeito do que gosto, não estou me culpando, é uma análise momentânea, afinal qual o motivo de eu querer saber a história por trás do móvel na loja? Então…, por mais que eu não tenha dinheiro para comprar o tal móvel exposto ali, eu ainda assim deveria fazer os questionamentos plausíveis para a existência dele, ou no mínimo deveria me questionar os motivos dele não estar ao meu alcance financeiro, e de não ser uma prioridade?

Quando minha irmã/amiga, Isa, assiste comigo algum filme de animação, e fala sem vírgulas, a respeito dos aspectos técnicos e criativos que cercam a obra, eu deveria me questionar o que aquilo influencia no meu entendimento da obra por inteiro, mas não, é mais fácil questionar e buscar aquilo que se encontra mais perto, ser consumidor é muito mais fácil.

Acho que quase todo mundo hoje é capaz de fazer uma crítica a Disney, mas essas críticas são por fatores diferentes, temporalidade, características sociais, características físicas e emocionais, questões de gênero, direção, fotografia, trilha sonora, dublagem, roteiro, e um monte de outras coisas, cada pessoa tem seu próprio universo dentro de si. Cada pessoa tem sua bolha que dificilmente vai ser estourada, cada vez que essa bolha estoura é um pequeno ato de revolução.

Quando começamos a questionar assuntos que antes só consumíamos, em atos impulsivos e desnorteados, deixamos de ser egoístas, ouvir os motivos do poeta para escrever a poesia, questionar o trabalho escravo na confecção do vestido, observar atentamente o desenho do diretor, contemplar a loucura do artista, questionar os testes feitos em animais.

Em meio a tudo isso eu acabei me deparando com a seguinte conexão, 13 Reasons Why é uma série produzida pela Netflix, cujo o suposto objetivo é levar ao questionamento do poder das ações de outrem em uma pessoa, são treze ações que levaram uma adolescente a cometer suicídio, é muito interessante? É, e continuaria sendo se eu não tivesse lido o livro em que a série se baseia e se não tivesse descoberto que a direção da série de forma bem desgovernada, introduziu uma série de fatores inexistentes no livro à série.

A série, antes de eu descobrir o livro já não era apenas uma série, era um produto, milimetricamente calculado e que tinha como objetivo atingir um público, mas também era uma ação pessoal e impessoal da direção, pesquisa, arte e fotografia, é uma decorrência de fatores e planejamentos, ações importantíssimas para um desenvolvimento que raramente são questionadas.

Eu não consegui assistir 13 Reasons, e quando falo isso as pessoas começam a questionar se ela é muito pesada, se eu tive algum problema emocional, começam a me olhar preocupadas, essas coisas…, mas a resposta é bem mais simples, a série que a princípio deveria promover o questionamento, anda fazendo bem mais do que isso, ela não segue o enredo do livro, tem suas próprias curvas, me feriu como leitora, e comecei a questionar os motivos, mudar um enredo para atingir um maior número de pessoas para o bem e para o mal.

É inquestionável os gatilhos que a série tem, vulgo o próprio número de telefonemas para o CVV(Centro de Valorização da Vida), afinal se houveram ligações é porque houveram gatilhos que levaram a determinados pensamentos. Não posso afirmar se o livro seria capaz de ter esses mesmos gatilhos, ou outros gatilhos, até porque eu acho o tom usado pelo autor no livro um pouco mais suave do que o que ouvi e li sobre (a série), mas é uma opinião pessoal de alguém que não é profissional da área (aliás de nenhuma área além da educação).

Fato é que metade desses questionamentos não seriam capazes se eu não tivesse questionado os motivos de tanta gente falar da série. Aliás a minha reflexão a respeito dessa como produto de consumo e lucro, em muito se dá pela própria direção, o que é um erro, eu sei…

Ser consumidor é mais fácil pelo simples motivo de sermos egoístas, só buscamos aquilo com que temos relação, eu me importo mais com pessoas do que com coisas, mas pessoas consomem e produzem coisas, se eu não penso logo não existo. Eu passo a não existir como indivíduo e passo a existir como massa, aquela que segue o fluxo, que não pensa e que compra.

Eu já disse que sou impulsiva, hiperativa e que tenho TOC, então…

Grata ao irmão reflexivoooooo

Amor, Crônica, Crianças, escolhas, Homofobia, Minhas Crônicas, Opinião, Padrão, Poliamor, Preconceito, Sem categoria, Violência

Pena & Tinta : Tão opostos e tão iguais.

passaros
imagem retirada do Pinterest, não consegui achar autor. ;(

Cartas de amor devem ter saído de moda, mas eu não fui comunicada formalmente a respeito disso, me apaixonei, mais vezes tentando te odiar, do que eu poderia imaginar, na verdade eu me assusto quando escrevo isso, e leio em voz alta.

Te conheci enquanto amarrava meu tênis e me preparava para cobrar uma falta, na aula de educação física, ainda não acredito que os meninos iriam realmente te chamar para entrar no meu lugar, ok, eu já superei isso, (mentira, não superei! Machistas) mas você não aceitou, preferiu continuar lendo aquele seu livro de histórias fantásticas, affs, te achei um tanto quanto “metido”.

Pensando bem você realmente era metido, exibido e estranho, aquele cabelo arrumadinho, aquele tênis completamente branco, aquela calça jeans limpa… Que tipo de adolescente era você? Com toda certeza alguém bem estranho, estranho o suficiente para no primeiro trabalho em grupo a turma inteira te odiar. “Eu não vou fazer com ninguém professora, vou fazer sozinho, eu sou capaz”. É…, naquele dia você conseguiu a antipatia de bastante gente.

Não preciso te lembrar que no final do dia, você precisou correr bastante antes de levar o primeiro soco, e cair de cara na lama. Demorei muito para ir te ajudar, fiquei meio estática quando percebi que os meninos estavam gritando palavras ofensivas na sua direção, o professor de Educação Física foi bem mais rápido do que eu, e te tirou do meio daquilo tudo, enquanto anotava o nome de cada um dos agressores.

Na última semana antes de fecharmos o bimestre você simplesmente sumiu, achamos que você tinha finalmente desistido, mas que tipo de adolescente desiste de algo e os pais não ligam? Essa hipótese foi quebrada quando a coordenadora recebeu uma ligação do seu pai, avisando que você estava doente. Duas semanas depois você apareceu com o braço quebrado.

No dia que você esqueceu seu caderno, e saiu sem nem olhar para trás, eu te segui, e para minha total surpresa, você não percebeu, lá estava você desajeitadamente entrando naquela academia de dança. Balé, quem diria o “senhor arrogante” fazia balé, não preciso dizer a quantidade de pensamentos que surgiam na minha mente né?

Fui homofóbica e o fato de ser adolescente não era desculpa para isso, muito menos para tirar a foto que eu tirei de você, enquanto fazia algo complexo na ponta dos pés, acho que nunca poderei falar o nome daqueles passos. Também acho que nunca serei capaz de realiza-los, lembro que tentei te imitar enquanto te observava.

No fim daquele dia não enviei a foto, não criei perfil falso, não fiz nada a não ser te olhar e imaginar como alguém tão idiota conseguia fazer algo tão lindo, é eu achava, eu ainda acho balé algo intenso e lindo, naquele instante eu só pensei que talvez fosse bom tentar te entender um pouco.

Te devolvi o caderno, e você não me agradeceu, sugeri fazermos o trabalho junto e você simplesmente continuou andando, quando já estava quase perdendo a paciência nossa professora de história resolveu que todos deveríamos fazer os trabalhos em grupo, ninguém queria fazer com você, e você não queria tirar zero.

Fazer um trabalho de ensino médio nunca tinha sido tão difícil, livros, livros, livros?????? Com tanta coisa na internet, como aquela professora pode nos mandar pesquisar na biblioteca da escola, você não falava muito, você não falava nada, apenas copiamos algumas coisas, tiramos algumas xerox e só.

No fim daquela semana já tínhamos feito tudo, era sexta, não nos despedimos, mas você foi embora, chutou as pedras pelo meio do caminho e se perdeu entre as ruas. Eu sabia para onde você ia.

Durante todo aquele ano eu fui a sua única parceira de grupo, o que me causou sérios problemas, era representante de turma e tecnicamente eu havia abandonado meu grupo de trabalho para te ajudar, e não estava recebendo nem bom dia, adolescentes são vingativos, um dia resolvi que não queria mas tentar te ajudar, não queria mais ser do seu “grupo”. Foi a pior coisa que eu fiz admito.

Lá estava você quietinho demais, disperso, fingindo ler aquele livro, aquele maldito casaco escondia quase toda a sua mão, eu não deveria me preocupar, mas estava calor demais e você parecia não ligar para as “zoações” que ocorriam no seu entorno, aquelas brincadeirinhas nada inocentes já estavam cansando, eu não via mais graça. Eu te segui naquele dia, fiquei preocupada, você estava estranho, tinha sobrado nos grupos e eu me senti culpada.

Você havia entrado em uma lanchonete, limpou os olhos e eu estranhei, você estava chorando, hoje eu me pergunto qual o problema? Homens choram… Uma moça bagunçou os seus cabelos enquanto dava um leve beijinho em seu rosto secando suas lágrimas, algo aqui dentro do meu coração ficou bem espremido, sabe o que eu pensei naquele momento? “Ele curte meninas????” Como eu era idiota, me desculpe, deveria ter me perguntado o motivo das suas lágrimas.

Um dia eu apareci naquela lanchonete, você me encarou surpreso, mas não falou comigo, eu também não falei com você. Dias se passaram até você finalmente se sentar ao meu lado e perdurar o silêncio por minutos que mais pareciam horas, enquanto eu bebia o suco de laranja.

“Você pode fazer o trabalho de matemática comigo?”, te encarei durante muitos instantes, sem nenhum por favor, “claro que não”, você se levantou e foi se embora. Eu deveria ter perguntado o motivo de você ter quebrado aquele seu orgulho idiota, mas não fiz, outro maldito erro. Você ficou de recuperação em matemática, você não tinha problemas com números quando eu te conheci, eu não conseguia entender como aquilo era possível.

As férias de dezembro logo chegaram, soube que você tinha passado de ano com média cinco, passou, viajei e só voltei em janeiro, quando fui naquela lanchonete você não trabalhava mais lá, não frequentava as aulas de balé e eu não entendi como você tinha evaporado dessa forma, talvez tivesse viajado, eu desejei que só fosse uma viajem.

A primeira semana finalmente aconteceu, mas você só apareceu duas semanas depois, estava com o braço enfaixado, com olheiras, e andava devagar, jogou suas coisas na cadeira do fundo, aquela que ficava perto da parede, tombou sua cabeça ali, a professora suspirou quando você não respondeu, alguns deram leves risinhos, outros cochicharam, mas estávamos no terceiro ano e bem…, no terceiro já somos meio-adultos, alguns não acharam graça e se preocuparam com você, eu me preocupei.

Você era uma figura estranha, nunca pensei ver você perdendo a cabeça e socando alguém, também nunca pensei te ver fumando, mas lá estava você fazendo tudo aquilo que esperavam que você fizesse…

Quando suas notas baixas no primeiro bimestre surgiram e você passou a não responder os professores, comecei a perceber que eu deveria ter feito aquele trabalho de matemática com você. Pela terceira vez te segui, você não foi para lugar algum especificamente, só sentou no chão de uma rua qualquer, enquanto a chuva caia e se misturava com suas lágrimas, é meninos choram, eu já tinha aprendido isso. Me sentei ao seu lado e você me ignorou, não percebi quando comecei a soluçar, mas que droga eu tinha me apaixonado por você!

“QUAL A PORRA DO SEU PROBLEMA” – Foi essa a primeira frase que eu troquei com você em meses, você me ignorou e eu te bati, foi um soco forte que fez você fechar os olhos.

“O MEU PROBLEMA SÃO OS SERES HUMANOS” – Como assim seres humanos? Fiquei parada tentando entender aquilo, mas você não continuou, se levantou e eu te segui, você me deixou te seguir enquanto fumava mais um dos seus cigarros, entrou naquela casa e bateu a porta na minha cara. No dia seguinte você não foi, nem no outro dia, no terceiro dia eu bati na sua porta, seu pai falou que você estava doente.

Quando finalmente apareceu eu me sentei ao seu lado, estava decidida a não me livrar de você. Mas que DROGA, você nem falava nada, mas por algum motivo você tinha voltado a fazer os trabalhos.

“Eu te vi no dia que tirou aquela foto na academia”, eu te encarei surpresa, você não me olhava estava observando alguma coisa mais interessante em algum outro canto, “minha mãe fazia balé, eu me sinto perto dela quando danço”. Eu não entendi, ainda não entendo, os motivos de você finalmente ter começado a falar…

Quando eu conheci seu pai achei que ele era quem te deixava daquele jeito, machucado. Não, não era seu pai, e eu descobri isso quando você surtou enquanto fazíamos um trabalho de geografia, lembra? Você se cortou na minha frente, eu me desesperei, eu gritei com você, segurei seus braços e te beijei, você desmaiou, eu entendi o motivo das camisas grandes, eu não duvidava que tivessem mais daqueles cortes espalhados. Você não me encarou por dias, eu também não tinha te encarado. Droga eu realmente gostava de você, mas não da forma como você gostava de mim.

Apaguei aquela foto do meu celular quase que ao mesmo tempo que seu pai me ligou pedindo para conversarmos, seu pai sim era um cara engraçado, ele nem sabia como começar aquela maldita conversa, sua mãe tinha morrido, você se mudado para morar com ele, trocou de escola, teve que abandonar o namorado, finalmente eu tinha descoberto que você era gay, finalmente eu tinha descoberto sua história, sua depressão e sua tendência autodestrutiva.

Eu também era meio autodestrutiva naquela época, engoli minhas lágrimas enquanto te encarava brincando com uma caixa de música na cama, eu estava decidida a não te deixar sofrer, me sentei ao seu lado, respirei fundo enquanto vi você se sentar e abaixar os olhos me perguntando se eu sabia, o silêncio era tão ensurdecedor que eu quase me perdi enquanto meu corpo me empurrava na sua direção, te abracei e foi nosso primeiro abraço debulhado em lágrimas. Droga eu te amava, e isso estava me destruindo.

Nos tornamos amigos finalmente, era final de ano, vestibular, provas finais, decidir o que fazer durante boa parte da vida era algo tão complexo que tudo que eu pensei foi “não quero fazer nada, quero fazer de tudo”, minha primeira opção foi uma universidade longe de casa, liberdade finalmente, trote, professores malucos, solidão. Passamos pelas mesmas coisas em locais diferentes, não estudávamos mais juntos, mas você parecia melhor, eu não me preocupei, seu pai também não, mas estávamos errados, nenhum de nós notou suas olheiras voltando a surgir, ou suas palavras sumindo em meio as frases. Droga eu era sua amiga, eu te amava, como deixei isso acontecer.

Naquele dia você simplesmente não ligou avisando que chegaria mais tarde, tinha sumido, comunicamos a polícia, dias depois você apareceu, estava um caco, não queria falar, tivemos que te dopar para que cuidassem de você. Você só ficava dopado, mas um dia, um determinado dia você simplesmente se cansou.

Eu realmente deveria não ter te amado, talvez se eu tivesse te amado menos eu tivesse percebido toda aquela dor disfarçada de sorrisos pequenos, eu ainda penso em você toda vez que abro aquela caixa de música, ainda penso em você enquanto ouço alguma música clássica e ainda penso em você quando percebo que eu poderia ter amenizado a sua dor.

Brincadeiras machucam, arrancam sangue, cansam… Eu entendo o motivo de naquele dia você me dizer que o seu problema eram os “seres humanos”, acho que no fundo esse é um problema de todos. DROGA eu ainda te amo…

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Esse texto faz parte do Pena & Tinta, um projeto de escrita criativa que tem como objetivo a criação de textos (crônicas, contos, poesias, relatos pessoais etc) em cima de temas predeterminados mensalmente. Um dos temas de novembro é OPOSTOS.

 Tem um blog e quer participar das próximas edições do Pena & Tinta? A gente está te esperando AQUI.